Segundo Bill Nichols, teórico do documentário cinematográfico, existem 6 tipos de documentários: poético, expositivo, observativo, participativo, reflexivo e performático. Alma do Deserto se encaixa em um documentário observativo e reflexivo, remetendo à estética do cinema direto, idealizada por Robert Drew em seu filme Primárias (1960, Robert Drew).
O movimento do cinema direto, conhecido como “mosca na parede”, surgiu nos EUA durante a década de 1960 e se destaca por acompanhar um personagem em sua jornada, sem interferências da equipe de produção, ou do diretor, em nenhum momento, deixando o personagem nos guiar.
No caso de Alma do Deserto, nós acompanhamos Georgina Epiayu, uma mulher trans de 70 anos, que perde todos os seus documentos após sua casa ser incendiada por vizinhos intolerantes. Assim, se inicia sua jornada para obter novos documentos que afirmem sua verdadeira identidade. Acredito que a palavra chave deste documentário seja justamente esta: identidade.

Alma do Deserto- Imagem de Divulgação por Sinny Comunicação
O fio condutor da narrativa é obviamente Georgina, uma mulher extremamente carismática e muito solitária, cansada de viver sem conseguir se encontrar em plena aridez do deserto colombiano. Em certo momento, Georgina conta a história de um homem que se relacionou, o que começa como um conto de fadas, termina com a realidade batendo na porta, instigando o espectador a apresentar uma forte empatia por esta mulher que somente quer ser vista e amada.
Além desta busca, acompanhamos Georgina conversando com seus vizinhos, a principal semelhança entre eles é o fato que poucos realmente se enxergam como importantes ou que merecem ser vistos. O rio está infectado com as fezes de pessoas de fora do vilarejo, a precaridade de suas casas dificulta a ascensão social e por uma hora e meia de duração, Alma do Deserto nos transporta para este universo precário, com muita graça e humor, principalmente em Georgina que traz um charme mesmo nos momentos mais densos.
Alma do Deserto é um documentário reflexivo sobre identidade e sobre a nossa própria importância dentro da sociedade.
Acompanhamos Georgina passando por um processo burocrático herculano, como se fosse o décimo terceiro de seus trabalhos, me remetendo inclusive à história de Os 12 trabalhos de Asterix (1976, Albert Uderzo e Rene Goscinniy), em que um dos desafios era justamente a casa da burocracia. Algo que Georgina sente na pele, porém, sem desistir.

Alma do Deserto- Imagem de Divulgação por Sinny Comunicação
O documentário se diferencia da reportagem jornalística por conta de um ponto de vista sempre claro, no caso de Alma do Deserto, nós encontramos o ponto de vista da persistência por meio de uma construção ficcional que remete a um dos primeiros documentários feitos: Nanook: O Esquimó (1922, Robert Flaherty).
Apesar de ser um documentário, Flaherty se utiliza muito da narrativa clássica para trazer força ao seu projeto, do mesmo modo que Monica Taboada utiliza em Alma do Deserto, principalmente nas conversas de Georgina com os atendentes do governo que darão a ela finalmente a sua identificação.
Ao final, ouvimos pela primeira vez a interferência da produção que conta que as gravações encerraram, que agora eles somente voltarão para visitar Georgina. Neste momento, a personagem apresenta um misto de felicidade e nostalgia, na medida que voltará para sua solidão.
Existe uma construção e uma linha dramática óbvia ao longo da produção, ela não se sustenta por meio de uma “voz de deus” como no documentário tradicional, e nem por meio de “talking heads” que contam a história da protagonista por ela. A verdadeira protagonista do todo é Georgina, e graças a deus por isso, pois a partir dela que sentimos na pele toda a dor e a agonia, porém, também a esperança de um futuro melhor.
O filme estreia na próxima quinta, dia 30 de janeiro. Siga-nos e confira outras dicas em @viventeandante e no nosso canal de whatsapp !