Dirigido por Antônio Pitanga, Malês dá visibilidade à revolta ocorrida em 1835, mas enfrenta limitações narrativas
A história brasileira sempre foi marcada por rupturas, violências e silenciamentos. Desde o momento em que os colonizadores portugueses pisaram neste território, instaurou-se um processo de apagamento sistemático das vozes indígenas e africanas que compõem nossa formação. Ao contrário de países como os Estados Unidos ou a Alemanha, que encaram de maneira aberta as feridas de seu passado, o Brasil vacila em refletir sobre as lutas e os sofrimentos que moldaram sua identidade nacional, enaltecendo os heróis errados. Episódios decisivos como a revolta dos Malês, ocorrida em 1835, permanecem desconhecidos da maior parte da população, apesar de sua enorme relevância histórica, sendo neste vazio de memória que surge Malês, dirigido por Antônio Pitanga.
Mais do que uma obra de ficção, o filme se assume como um gesto de resgate, afinal, Pitanga reconstrói com rigor estético e respeito cultural, o universo dos escravizados muçulmanos que protagonizaram uma das maiores revoltas urbanas do período colonial. Há um cuidado evidente na direção de arte, na escolha da fotografia que privilegia a luz natural e claustrofóbica para evocar a sensação de opressão, e, sobretudo, na utilização da língua tradicional malê, utilizada em diversos momentos e trazendo um vigor para a produção na medida que é falada com autenticidade pelos atores, demonstrando um dos maiores objetivos da produção: dar voz a um povo que a história oficial tentou silenciar.

Antonio Pitanga em cena de Malês- Divulgação Palavra Assessoria
Nesse sentido, o longa tem um valor inestimável. Ele cria um espaço de representação raro, em que personagens negros não são apenas coadjuvantes ou símbolos de sofrimento, mas sujeitos históricos complexos, dotados de agência, fé e desejo de liberdade, com destaque para Sabina de Camila Pitanga: Mulher liberta, ela encarna de forma densa as contradições de seu tempo, na medida que deseja preservar sua condição, mas vive em constante diálogo com a luta dos Malês escravizados. Sua recusa em participar do levante não a torna menos forte, mas sim mais complexa, revelando as múltiplas estratégias de sobrevivência que existiam dentro da escravidão.
Outro aspecto notável é a presença feminina no filme. Ao invés de serem reduzidas a figuras secundárias, as mulheres aparecem em diferentes papéis: guerreiras, mães, esposas, estrategistas, ampliando a compreensão da revolta e revelando a dimensão social e afetiva da resistência.
Se Malês brilha como documento histórico e como gesto político, sua força enquanto narrativa cinematográfica é menos consistente. A ausência de um protagonista claramente definido enfraquece o vínculo emocional com o espectador, afinal, ainda que a revolução seja o eixo central, o roteiro se fragmenta ao tentar abarcar todas as injustiças sofridas pelos Malês, multiplicando diálogos expositivos que diluem a tensão dramática.
Ao ressaltar, de diferentes formas e por meio de vários personagens, as violências impostas pelos senhores brancos cria uma dinâmica repetitiva e um tanto maniqueísta, faltando nuances aos opressores, e também para alguns membros da revolta em si, que passam longe da complexidade de Sabina e surgem apenas como figuras de maldade absoluta, sem espaço para contradições que poderiam enriquecer a trama.
O resultado é um filme que alterna momentos de grande beleza plástica e força interpretativa, com outros de ritmo arrastado e impacto reduzido que remetem à novelas de redes televisivas como Record, com o espectador, em certos trechos, se sentindo diante de uma aula de história dramatizada do que de uma obra cinematográfica plenamente envolvente.

Camila Pitanga em cena de Malês-Divulgação Palavra Assessoria
Apesar disso, seria injusto desconsiderar a importância cultural de Malês. Em um país onde a memória negra é constantemente apagada, o simples ato de filmar, com seriedade e respeito, a história dos Malês, e de sua importante revolta, já é uma forma de resistência como um todo.
Mais do que entreter, o longa de Antônio Pitanga convida à reflexão. Ele nos lembra que a cidadania brasileira foi construída sobre sangue, suor e resistência, e que a liberdade conquistada jamais foi um presente, mas fruto de batalhas como a dos Malês, apesar de tropeços em seu papel como narrativa, Malês cumpre um papel fundamental: devolver ao presente uma memória que insiste em ser esquecida.
Com distribuição da Imovision e produção de Flávio Ramos Tambellini, em parceria com nomes como Cacá Diegues e Lázaro Ramos, Malês estreia nos cinemas nacionais em 2 de outubro.
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