Se você já não está mais em isolamento e não quer se lembrar de como era ficar entre quatro paredes 24 horas por dia, não assista Distanciamento Social. Contudo, se você é como essa que vos fala e ainda segue em casa depois desses sete meses de pandemia, veja a série da Netflix. Talvez assim você não se sinta tão solitário nesse mundo vendo pessoas passando pelas mesmas situações que você.
Em um momento no Brasil (e no mundo) que parece até que o afrouxamento das regras é total, podemos pensar se a série não perdeu um pouco de timing no lançamento. É até estranho assistir pessoas trancadas dentro de casa sem poder sair por causa de uma pandemia. Todavia, os oito episódios da primeira temporada remetem ao início de tudo. E em como as pessoas tiveram que reaprender a viver diante dessa nova situação.
Antologia
A série, porém, não foca tanto no vírus e em suas consequências na saúde das pessoas. Salvo um episódio – um dos mais tristes –, que mostra um personagem com coronavírus e outro tendo que lidar com a situação. Hilary Graham, a criadora da série, disse que a intenção é mostrar as consequências do distanciamento na vida das pessoas. Em cada episódio, foca em núcleos familiares ou de amizades diferentes. Além disso, demonstra como o isolamento afetou suas relações com os outros e com elas mesmas.
No primeiro episódio, por exemplo, Mike Colter (de Luke Cage) interpreta um homem alcóolatra. Há pouco havia começado a frequentar as reuniões do Alcóolatras Anônimos. Com a obrigação do isolamento, se vê completamente sozinho em casa, tendo que lidar com a falta da ex-namorada – e da bebida. Em outro, um casal de médicos recém-aposentado precisa encarar as diferenças, mesmo após tantos anos juntos. Afinal, a mulher quer voltar para a linha de frente na luta contra o corona vírus, mas o homem não. Duas situações muito comuns durante o período de isolamento: o confronto com os nossos e com nós mesmos. A série, sem dúvida, deixa evidente o quanto esse movimento foi importante. E deixará efeitos eternos em nossas vidas.
Críticas sociais
Distanciamento Social também aproveita para fazer críticas sociais. Com uma linha do tempo que começa no dia 2 de abril e termina no dia 30 de maio, aborda o tema do movimento que ficou mais forte no mundo inteiro com a morte de George Floyd. Assassinado por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, sua morte deu início a uma série de manifestações contra a brutalidade policial com pessoas negras.
O Black Lives Matter está presente no oitavo episódio, um dos melhores da série, quando um jovem quer participar da passeata e seu empregador não o permite. Ambos negros, o episódio contrapõe as ideias dos homens de gerações diferentes. Apesar de acreditarem que devem reivindicar seus direitos e lutar pela igualdade, acreditam em formas contrastantes de como o fazer. A saber, o episódio é protagonizado por Asante Blackk, de This is us e Olhos que condenam, e seu pai, Ayize Ma’at. Ayize não é ator profissional, mas faz um trabalho belíssimo.
Aliás, confira, a seguir, o trailer – e siga lendo:
O dilema da mãe sola
Outros familiares não-atores também participaram da série, pela dificuldade do encontro físico com outros atores. Porém, tiveram importantes papéis nos episódios. Foi o caso de Leo Bai-Scanavino, filho de Peter Scanavino (de Lei e Ordem). Ele atuou com o pai no episódio mais triste da série (sim, o mencionado linhas acima). Larita Brooks, mãe de Danielle Brooks (de Orange is the new black), também esteve ao lado da filha. Porém, elas não repetiram na tela os laços que têm na vida real.
Danielle é Imani, uma enfermeira. Ela passa seu dia cuidando de uma paciente idosa, Earnestine, interpretada por Larita. Esse episódio, um dos meus preferidos, deixa a reflexão de como as mães sem rede apoio precisam continuar trabalhando enquanto as escolas estão fechadas. Sem políticas públicas sociais para que possa ficar em casa com sua filha, Imani se vê obrigada a deixar a filha sozinha em casa. Afinal, ela tem que trabalhar para sobreviver. A solução encontrada no episódio não é das melhores. Todavia, ainda é melhor do que o que muitas mulheres precisam fazer na realidade, principalmente no Brasil.
Alívio cômico
Como já deu pra perceber, a série não é uma comédia. A maioria de seus episódios certamente tende para o drama. Isso é perfeitamente normal se pensarmos na época em que estava sendo produzida. Porém, há dois episódios cômicos para aliviar um pouco a tensão do espectador. São eles “Uma celebração do ciclo da vida humana” e “Bem de perto”.
“Uma celebração do ciclo da vida humana” fecha o top 3 dos melhores episódios da série para mim. Com Oscar Nuñez (de The Office) como o rosto mais conhecido, mostra uma família que sê vê obrigada a fazer o serviço funerário do patriarca virtualmente por causa das restrições ocasionadas pela pandemia. O timing cômico de todos os que participam do episódios está perfeito. É um sopro de alívio entre tantas histórias pesadas da série. Recomendo deixar para assistir no final a fim de que termine a série sorrindo.
Dispositivo agregado à narrativa
Social Distance (no original) foi gravada de forma remota. Microfones, luzes, figurinos, objetos para cenografia e todo equipamento utilizado foram entregues nas casas dos atores. Antes de tudo, eles tiveram que aprender a manuseá-los. Tiveram, pelos computadores, orientação dos profissionais de cada área. É provável que essa presença constante de inúmeras telas tenha contribuído para adicioná-las à narrativa. As telas e os dispositivos não se escondem. Salas de videoconferência, celulares, câmeras de segurança, plataformas de videogame ganham protagonismo em cada episódio. Viram quase mais um personagem.
Afinal, assim também têm sido nossas vidas. Nosso único contato com o mundo externo e com outras pessoas tem sido através de telas. Elas viraram protagonistas também de nossas vidas.
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