“A Serpente” é um filme arrojado, ousado, diferente, alternativo. Uma mistura entre teatro e cinema capitaneado por atores do naipe de Matheus Nachtergaele e Lucélia Santos, junto com Silvio Restiffe, Cellia Nascimento.
Matheus faz seu primeiro trabalho cinematográfico sobre um texto de Nelson Rodrigues vivendo Paulo, e Lucélia – atriz preferida do autor – retorna aos cinemas em alto estilo fazendo as gêmeas Lígia e Guida.
Com uma linda fotografia de Pablo Baião, o caminho escolhido pelo diretor pernambucano Jura Capela é extremamente artístico, artesanal e foge da caretice. O início mostra cenas gravadas em Mariana, poucos dias após a tragédia a partir da mineradora Samarco que devastou o local.
O longa-metragem, coproduzido pelo Canal Brasil, chega agora aos cinemas. Em São Paulo, o filme estreou dia 15 de agosto no Cine Sesc e, no dia 23, terá uma pré-estreia no Cinema São Luiz, no Recife.
Pude entrevistar o Matheus, em uma parceria com o BLAH CULTURAL, um dia após ganhar o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante por O Nome da Morte. Ele ficou muito à vontade e falou sobre o filme, Nelson Rodrigues, sua admiração pela Lucélia Santos e outras histórias de sua belíssima carreira.
Alvaro Tallarico: Primeiramente, parabéns pelo prêmio.
Matheus: Obrigado, nego, foi uma surpresa tão agradável para mim. Eu não estava esperando levar. Já ganhei esse prêmio, sabe? Como ator, pelo Auto da Compadecida, uma vez; e pelo Primeiro Dia, do Walter Salles. Sempre sou indicado quando faço algum trabalho bonito. Fico muito feliz. Mas, nesse caso, fui surpreendido. Os indicados eram muito bons e o Otavio Muller estava indicado por dois filmes. Realmente achei que era do Otávio. Fiquei muito contente e agradecido à Academia. Para vermos que não existe personagem grande ou pequeno.
Alvaro Tallarico: Realmente. Por falar nisso, nesse novo filme A Serpente você faz um personagem diferente de outros que costuma ser chamado, por ser uma figura mais masculina, dentro de um filme que tem uma estética bem diferente, ousada. Como foi esse desafio?
MN: Em um filme mais careta, eu não seria o Paulo. Ele é um homem, machão e machista, disputado por duas mulheres, duas irmãs, que são enlouquecidas afetivas e sexualmente. Na verdade, os três personagens, Paulo, Lígia e Guida estão muito doentes afetivamente na minha opinião. Num filme careta eu não seria esse personagem. As escalações são muito em cima do físico. E, nesse caso, nunca sou eu. Sempre sou o inteligente, o engraçado, o vilão, o louco, o artista, o Joãozinho Trinta, o Mazaroppi… nunca o homem disputado, o galã. Agora, no cinema alternativo, como é A Serpente do Jura Capela existe a possibilidade de você escolher pelo talento e pela voltagem emocional. Foi por aí que o Jura escalou.
A Lucélia Santos é uma atriz de uma voltagem emocional teatral que interpreta muito visceralmente. Eu posso acompanhá-la como ator nessa voltagem e fisicamente a gente combina como par. Somos pequenos, temos uma beleza comum, não somos nem beldades, nem monstrinhos (risos). Somos comuns. Achei que abriu para mim uma porteira bonita para fazer um tipo de personagem que em geral não faço.
AT: Percebe-se que você gostou de fazer esse personagem.
Matheus: Por muitos motivos! Primeiro porque nunca tinha feito Nelson Rodrigues profissionalmente. Só fiz na escola de arte dramática na USP e ensaiei Nelson Rodrigues com Antunes Filho, o grande diretor paulistano que faleceu esse ano. Isso foi em 1989. Foi minha primeira experiência teatral. Fiquei durante oito meses ensaiando Nelson Rodrigues com ele e não estreei. Voltei para a faculdade de artes plásticas. Não estava decidido que eu seria um ator. Um ano e meio depois prestei vestibular para USP. Para escola de artes dramáticas e aí realmente iniciei minha trajetória como ator.
Nelson Rodrigues está nas minhas primeiras lembranças de teatro. E Lucélia Santos nas minhas primeiras lembranças como espectador. Tinha oito anos de idade quando ela fez A Escrava Isaura. A primeira novela que acompanhei, primeira atriz que me tornei fã, ainda adolescente, nos anos oitenta. Lucélia protagonizou muitos filmes daquela época e a maioria deles eram adaptações de Nelson Rodrigues. Então de novo, Nelson na história. Eu, ainda adolescente, indo ao cinema para ver Lucélia, conhecendo a obra do Nelson devido ao meu amor por ela. O filme foi uma experiência arriscada, arrojada, do ponto de vista estético, um filme alternativo mesmo, de arte, com bastante voltagem de cinema. Uma experiência para ver em tela grande.
AT: É muito teatral também, né?
Matheus: É muito teatral. Respeita muito e procura pesquisar essa teatralidade do Nelson Rodrigues na linguagem de cinema, como seria. Não é um filme naturalista ou realista, é teatral, alegórico, com uma voltagem emocional muito bonita. Fotografia preto e branca muito bonita do Pablo Baião. A peça mais curta do Nelson, a primeira que ele esboçou, antes de realizar toda sua obra como dramaturgo e foi a última que publicou. Ou seja, no final da vida ele decidiu mostrar o primeiro esboço que era A Serpente. Você pode dizer é uma espécie de semente de tudo que o Nelson acabou fazendo durante a vida.
AT: Que alegoria interessante.
Matheus: É uma história de tons exagerados, um pouco patéticos, como sempre em Nelson Rodrigues, né. Mas trágica. Na Serpente a situação se instala muito rapidamente, a tragédia se instaura e o desfecho se precipita, é rápido, em uma hora o filme termina, a peça está inteira lá. Não cortamos cena, está tudo lá. Uma peça curta e grossa.
AT: Nesse filme inclusive, seu personagem vai de homem, daquele estereótipo masculino, e meio parece se tornar um menino na mão delas.
MN: Ele vai virando um menino como todo homem machista. Isso é importante dizer, como todo machista ele a princípio fica muito feliz de estar comendo duas mulheres, mas logo depois vira um menino, e um menino perigoso. Homens meninos, homens machistas, são violentos. O que acontece é que uma irmã oferece o marido para outra por uma noite. Ambas vividas pela Lucélia. A Lígia está pensando em suicídio e a Guida oferece o Paulo para que ela não se mate, só que a partir daí, dessa noite que o Paulo aceita, de um jeito levemente malandro e ingênuo. Ele aceita comer a cunhada para salvá-la. Tem junto aí a malandragem do homem machista. “Vou aproveitar e passar a vara na cunhada!”.
Ele não imagina, não perspectiva o tamanho da tragédia que está se metendo. Elas se tornam inimigas mortais e ele se torna quase que um brinquedo assassino nas mãos delas. Vão jogando ele contra uma e contra outra o tempo inteiro, até que alguém vai ter que morrer. Não digo quem morre para não dar spoiler, apesar da peça ser bem famosa. A verdade é essa. Rapidamente o Nelson mostra a situação, Paulo come a Lígia, a Guida enlouquece, Lígia também, e as duas vão enlouquecendo o Paulo. E você entende que alguém vai ter que morrer.
Eles não são astutos afetivamente o suficiente para resolver isso como foi colocado. É bem legal, bem teatral, bem alegórico. É sobre as relações entre homens e mulheres que não tem a capacidade de ficar maduros no afeto. Como quase sempre, ou sempre, em Nelson Rodrigues, são homens e mulheres que confundem o afeto com as punções primitivas, bestiais, que a gente carrega com a gente.
AT: E você acha que dá para fazer um comparativo entre o Paulo que é esse menino disputado com o nosso Brasil nesse momento?
MN: (Pausa) Acho que Nelson Rodrigues fala sobre o Brasil o tempo inteiro, sobre a média do homem brasileiro, sua culpa, seus preconceitos, seus medos e a sua selvageria. É como se pusesse um dedo nas nossas feridas, sempre. Acho que isso permanece muito parecido, o país é jovem, o ser humano é jovem na terra. Agora, para fazer uma conversa com o Brasil atual, botaria a atenção na questão do machismo, tanto das mulheres, quanto do homem. Nesse momento, por muitos motivos que não vem ao caso falar agora, elegemos um governo machista. E é bom a gente pensar no porque quisemos dar essa ré. Porque basicamente uma das características fortes do poder atual do governo brasileiro é o machismo masculino. Machismo masculina parece pleonasmo, mas não é.
Alvaro Tallarico: Exatamente isso que eu pensava quando você citou a questão do machismo e Nelson Rodrigues que sempre conseguiu ver dessa forma tão profunda, esse nosso moralismo, essa situação brasileira, sempre um pouco estranha, a gente sempre nessa transição, quis fazer essa pergunta porque sei que você é um cara muito conectado.
MN: Muita gente acusa, ou acusava o Nelson de machista. Aprendi com Antunes Filho que não era. É trágico, como ele escreveu em determinada época das nossas vidas no Brasil,ele acusou e apontou o dedo para o machismo reinante na época. Mas ele mesmo não considero um machista, mas sim um trágico. E nós como espectadores contemporâneos, podemos prestar atenção nos traços machistas da Serpente para tentar nos melhorar como seres humanos. Estamos em uma caminhada. Vamos utilizar a arte para aprender. Para isso que serve, para ampliar as consciências. Aumentar as liberdades e as consciências.
AT: Ótimo momento então para esse filme ser lançado e para gente assistir.
MN: E trazemos Lucélia de volta para Nelson. Ele dizia que era sua atriz preferida. Ficou fora dos cinemas durante quase uma década, ou até mais. Ela volta em dose dupla, no telão.