FLIP. A sigla tem seu significado, mas poderia muito bem ter outro: Faculdade Literária de Paraty. São cinco dias que mais parecem um curso intensivo. Vários debates, lançamentos de livros em casas diferentes com temáticas diversas. Difícil é escolher onde ir e o que fazer dentre tantas boas opções.
Cheguei no final da quinta-feira, segundo dia da décima sétima edição da FLIP (na verdade quer dizer Feira Literária Internacional de Paraty). Em Areal do Pontal, ocorria a FLIPEI (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes), a parte, digamos, mais “alternativa” do evento. Jovens de todas as formas e estilos, entre livros, vinhos e cigarros, papos animados e debates quentes como o primeiro que vi: “Aqui tem um bando de louco? Saúde e loucura no país das fake news”. O assunto era forte, a antiga cultura manicomial do país que vem mudando e essa onda de notícias mentirosas e tendenciosas enganando tanta gente.
A mente já trabalhava refletindo sobre o que tinha ouvido, quando atravessei em direção ao centro histórico. Uma grande livraria da Travessa estava lá, em um estande ganhei a Revista Piauí especial da FLIP 2019, e segui andando ao léu, quando encontro a Casa Submarino, onde os jornalistas Bruno Thys e Luiz André Alzer, organizadores e editores do livro “Toca o Barco”, em homenagem a Ricardo Boechat, participavam de um bate-papo. Falavam sobre as histórias de Boechat, contadas no livro por 32 colegas que trabalharam e conviveram com o mesmo. Logo em frente, havia a Casa da Porta Amarela, palco de novos escritores e booktubers.
Adriana pela janela
Voltei ao Areal por um motivo especial; no Caminhão EDP tinha show da Adriana Calcanhoto. Estava cheio e fiquei longe. O palco baixo não me permitia ver a cantora. Distante, ia escutando enquanto saboreava uma dose da cachaça Gabriela, símbolo da cidade de Paraty. A voz de Adriana conduzia os espectadores e esquentava a noite fria. Quando escutei os primeiros acordes de “Pela Janela”, não resisti e fui encontrando espaços por entre a multidão até conseguir ver seu rosto. Seu cabelo raspado reluzia com a luz da lua crescente e da iluminação artificial.
Sexta-feira, vi o lançamento do livro “Maréia” de Miriam Alves na Casa Poéticas Negras. O feminismo negro foi um dos temas principais da conversa – e da FLIP 2029, temperada com espiritualidade. Sem deixar de falar sobre o livro, que conta, paralelamente, a história de duas famílias brasileiras, uma formada por personagens negros e outra por personagens brancos; filosofando sobre a discrepância entre as experiências dos mesmos, a partir de fatos históricos. Diversos outros livros sobre a importância africana na nossa cultura eram vendidos ali.
Atravessando a rua, na Casa Edições Sesc, mais uma aula de história. “Prazeres e pecados do sexo na história do Brasil”, de Paulo Sérgio do Carmo, é lançado. Assunto polêmico abordado em um livro que demorou mais de oito anos para ficar pronto. A exploração sexual no Brasil, as barbaridades, o sexismo, e como tudo isso faz parte desse país extremamente desigual e sexualizado.
Desafios do jornalismo na FLIP 2019
No fim da tarde, um dos momentos mais tensos do evento. Um pequeno grupo de manifestantes ficou soltando fogos, botando som muito alto tocando o Hino Nacional remixado e gritando em um megafone contra a conversa que acontecia no Barco FLIPEI, “Os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato”, o qual contava com a presença do jornalista Glen Greenwald. O Areal do Pontal ficou lotado para assistir, mas muitas vezes era difícil escutar bem o que era dito. Gregório Duvivier também participou, sendo responsável por ironizar aqueles que se manifestavam, trazendo risos ao público, ávido por escutar Glen.
Sábado de manhã, “Profissão de Risco”, com Marcelo D´Salete e Germana Viana. Feras da nona arte no Brasil. Falaram sobre as dificuldades em fazer histórias em quadrinhos em um país que pouco as valoriza. No mesmo dia, pude ter em minhas mãos “Angola Janga”, obra de 432 páginas, fruto de um processo de pesquisa de onze anos do Marcelo, combinando ficção e realidade para apresentar uma nova perspectiva sobre um polo de resistência negra do Brasil colonial.
Germana Viana é a mulher que criou “As Empoderadas“, série que lançou o Pagu Comics, selo de quadrinhos feito só por mulheres. Suas histórias têm a virtude da representatividade feminina sem estereótipos. Engraçada, sagaz e inteligente, levou o público a rir muito com seus relatos.
Descolonizando
Ufa, vamos em frente para a Casa IMS, “O ritmo descoloniza a língua + lançamento serrote #32”, uma conversa com o escritor e músico angolano Kalaf Epalanga, mediada por João Fernandes. O sotaque português prevaleceu durante o papo, juntamente com o carisma de Kalaf e sua eloquência impressionante. O simpático escritor chegou a ficar horas autografando livros.
Para encerrar aquele sábado da FLIP 2019, música da maior qualidade: Ellen Oléria canta Chico Buarque. Um pocket-show na Casa Paratodxs, com participação especial da pianista Paola Lappicy. O lugar ficou pequeno para tanta gente. Ellen pingava de suor com tanto calor, que só aumentava com suas interpretações poderosas, intercaladas por poesias e falas sobre feminismo negro. Forte.
Domingo, fechamento com chave de ouro, logicamente. Preferi ficar mais pela Casa Sesc Santa Rita. Às onze da manhã lá estava eu para assistir Café Literário com o tema “Jornalismo literário ou literatura jornalística?” com Chico Felitti e Sérgio Rodrigues. A conversa fluiu sobre como ser jornalista nos dias de hoje, as possibilidades, a mistura de realidade com ficção.
Saí correndo para a mesa principal do dia “Livro de Cabeceira”. Amyr Klink entrou e deu um show, comparando a teoria acadêmica com a prática dos barqueiros. Contou um pouco sobre sua vida em Paraty, seu barco, o Paratii, companheiro de tantas aventuras; e como a sabedoria oral, a cultura dos que fazem para sobreviver é importante e deve ser preservada.
O anoitecer na FLIP 2019
Um pouco depois, retornei ao Sesc Santa Rita para “O romance como identidade”, com João Castro Rocha e Ana Maria Gonçalves (autora de Defeito de Cor). Nossa, que bela aula! Sociologia e as diferenças entre o “país Brasil”, que está aí e dá certo; e a “nação Brasil”, nunca alcançada. Explicações sobre o homem cordial – e a brutal realidade por trás do termo – assim como o momento político de pessimismo. O binarismo atual, onde o problema está em um lado se pôr como superior ao outro. A literatura e a experiência literária como instrumento de descentralização, dotada do poder de ampliar o repertório existencial do ser humano.
Anoitece, vou para o Areal do Pontal, onde tudo começou (ao menos para mim). A festa ia terminando com shows de artistas paratienses. A festa do livro termina e a espera pela próxima FLIP começa. Teve muito mais, porém só estando lá mesmo para saber e absorver o máximo possível. Paraty, paraíso da cultura, e, todo ano, durante alguns dias, capital internacional da leitura. Curso intensivo de diversidade e amplitude de pensamento. Gratidão, FLIP 2019.
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