Nesta quinta-feira, dia 20/02, estreia “Flow”. Filme de animação, que tornou-se a primeira produção da Letônia a ser indicada ao prêmio Oscar. No caso são duas indicações: melhor filme de animação e melhor filme internacional. A direção é de Gints Zilbalodis, e, segundo ele mesmo, essa foi a primeira vez que ele trabalhou em uma produção de forma coletiva. No caso, com uma equipe de cinco pessoas. Com ele, incluso, logicamente.

Flow: As aventuras de um gato
Na história, um singelo gatinho vive dentro de uma casa, aparentemente abandonada, no meio de uma floresta. Frequentemente ele sai à procura de alimentos e acaba tendo que fugir de um bando de cachorros que sempre o perseguem. Um certo dia, ele percebe algo estranho. Alguns animais aparecem correndo, entre eles um grupo de veados, como se fugissem de algo. Logo, ele percebe que está acontecendo uma grande inundação na floresta. Ao tentar fugir, o gatinho acaba alcançando um barco à deriva. No barco, há uma capivara.
Acompanhamos, então, a jornada do gato nesse barco. Ao longo da jornada, outros animais vão se juntando ao grupo incomum de animais refugiados. Entre eles, um dos cachorros do grupo que vivia perseguindo o gato. Cada espécie tem hábitos e peculiaridades muito particulares. A convivência entre eles não será fácil, mas necessária para a sobrevivência de todos.

A comunicação entre os animais
Os personagens de “Flow” não falam. Mas, isso não quer dizer que eles não se comunicam. Na verdade, eles se comunicam bastante. Porém, essa comunicação encontra uma certa barreira quando ela ocorre entre espécies diferentes. Que é exatamente o que acontece em grande parte do filme com a maioria dos personagens.
Ao longo da jornada, cada um deles tenta se aproximar do outro sem anular suas próprias características, mas compreendendo como cada um é. Inclusive, por motivos variados, cada um deles percebe que pode sentir-se mais próximo de quem não é da mesma espécie, do que ao contrário. O filme mostra de uma forma bem simples e direta ponderações sobre empatia, confiança e cumplicidade entre estranhos.

O mundo de “Flow”
O filme não dá muitas explicações sobre a inundação ou sobre o mundo que vemos ali. Sabemos que existe (ou existiu) a presença de seres humanos. Além da casa, já citada, aparecem esculturas e monumentos ao longo da jornada. Mas, onde eles estão? Seria a inundação a consequência da instalação de uma hidrelétrica? Os seres humanos foram extintos?
Tal qual refugiados que não têm tempo para questionar ou analisar os motivos que os levam a condição de ter que buscar, em jornadas perigosas, o caminho para terras desconhecidas. Os animais de “Flow” estão à deriva em um mundo em constante mudança, tal qual o nosso mundo atual, em meio a tantas mudanças climáticas extremamente drásticas e ameaçadoras.

A consciência animal
Muitos filmes utilizam animais como protagonistas, mas poucos exploram a consciência animal dos personagens. Ou seja, como será que os animais percebem o mundo? Como eles criam laços afetivos? Cada animal é apresentado e tem uma função na história com base nos comportamentos típicos de cada espécie. Mas não se trata de um documentário da National Geographic. Então, a animação toma uma certa liberdade para tentar vislumbrar como esses animais percebem os perigos à sua volta e o que é preciso para sobreviver ao ambiente que os afeta diretamente.
Essa percepção também inclui uma autopercepção, seja de modo mais sutil, quando o gato questiona seus próprios medos, ou de modo mais evidente, como na obsessão do lêmure com sua imagem refletida no espelho. É apenas entendendo a si mesmo, que eles podem compreender os outros, como entender que o que é bom para alguns, pode não ser bom para outros. Essa sensibilidade não se restringe ao grupo no barco, pois outras espécies vão passando pelo caminho, inclusive uma baleia, que logicamente, não poderia estar no barco. Mas que aparece oportunamente como uma poderosa aliada.

Flow: Um estado de fluxo
“Flow” é um termo na psicologia que define um estado de fluxo que uma pessoa pode experimentar ao envolver-se profundamente em uma atividade. Em outras palavras, quando alguém “embarca” em uma empreitada tão empolgante que esquece de qualquer tipo de problema ou obstáculo que possa surgir. Todos os acontecimentos que vão fluindo e se sucedendo nos convida a embarcar nessa jornada naquele pequeno barco.
Esse estado de fluxo é algo que pode ser pensado até para a própria produção. Afinal, o diretor a fez embalado por uma implosão dinâmica por meio da animação. A única arte conceitual que foi realizada foi a ideia do visual do gato. Todo o resto foi sendo criado e modelado já dentro do software de animação. Ou seja, uma animação que foi produzida dentro de um efetivo e espontâneo estado de fluxo.

O ritmo do “flow”
Em determinado momento, o ritmo de “Flow” pode parecer lento ou arrastado. Mas, é interessante pensar em como essa escolha estética e narrativa brinca com nossa percepção de ritmo e fluência da história. Tal qual o gato, e os outros animais, somos convidados a sair, meio que à força, de uma zona de conforto. Uma área comum que estamos acostumados com um mundo de animações muito dinâmicas e vertiginosas.
Esse clima de estranhamento e descoberta permeia todo o filme, especialmente no gato protagonista. Se no início, ele teme até o mínimo contato com a água, ao longo da história, ele vai ficando mais destemido em relação a mesma. Embalado pela trilha hipnótica, composta pelo próprio diretor, percebemos como cada descoberta nova dos animais é uma forma também de pensarmos em aspectos de nossas próprias relações em nossas vidas.

Uma janela para produções de menor porte
Uma informação que vem sendo bastante difundida, inclusive como grande mérito, é o baixo custo da produção. O filme custou 50 vezes menos que “Divertidamente 2”, por exemplo, e tem um orçamento menor do que todos os filmes que venceram o Oscar de melhor animação, desde a criação da categoria. O orçamento foi tão apertado que não há cenas deletadas. Tudo que foi produzido entrou no corte final. O filme foi todo produzido no software Blender. Que, ao contrário do que se pode imaginar, não é um software desconhecido ou negligenciado.
Na verdade ele é bem nichado e conhecido por quem trabalha com animação. Filmes como “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” utilizou o Blender. O grande triunfo foi basear toda a produção completamente no uso desse software que é totalmente gratuito e com código aberto. O sucesso de “Flow” pode abrir uma janela para muitas produções de menor porte serem realizadas. Seja no campo da animação, ou até na própria Letônia. O filme tornou-se motivo de orgulho nacional e virou patrimônio, rendendo, inclusive, uma estátua do gatinho protagonista na cidade de Riga, capital da Letônia.

Forma e conteúdo
Afinal, um filme que valoriza mais uma harmonia entre forma e conteúdo, mostra que não é preciso de um orçamento mega inflacionado para criar animações extremamente técnicas, mas com conteúdos cada vez mais genéricos e rasos. Além disso, após a surpreendente jornada de “Flow” pelas premiações, mundo afora, o governo letão anunciou que pretende investir mais no incentivo a produções audiovisuais no país.
Com uma equipe reduzida e um comprometimento em materializar uma visão artística, a pequena equipe de “Flow” conseguiu fazer um belo filme sobre solidão e amizade, unindo fantasia à realidade. Afinal, os sons dos animais foram todos gravados de animais reais (alguns em zoológico). Com exceção da capivara, cujo som foi considerado pouco adequado à sua personalidade. Ela foi “dublada” por um bebê camelo.

Onde assistir
O filme “Flow” pode não ser o que você não espera de um filme de animação típico. Mas é encantador e surpreendente para quem deseja ter um contato mais profundo e reflexivo com uma forma diferente de ver o mundo.
O filme estreia no dia 20/02 nos cinemas. Por fim, consulte a rede de cinemas de sua cidade para encontrar sessões disponíveis. A distribuição é da Mares Filmes e Alpha Filmes.
P.S. Agradecimentos à Bia Bock, por sua contribuição com informações mais apuradas sobre o Blender.