Sempre que me pedem um texto sobre um livro, digo que não o faço em PDF, e o motivo é óbvio. Quando pegamos um livro percebemos a riqueza de suas figuras, e quando não a temos, a diagramação faz toda diferença para um leitor. “Já Raiou a Liberdade” da querida Rosana Lanzelotte, evidencia muito essa teoria.
Rosana de Saldanha da Gama Lanzelotte é uma cravista e pesquisadora brasileira. É considerada uma das principais cravistas do país, premiada pelo Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro com o “Golfinho de Ouro”, em reconhecimento pelos seus esforços em prol da divulgação da cultura.
Rosana transcende o bom-senso, ela é um transbordo de ensinamentos no que se diz a história da música, por meio de uma pesquisa genuinamente aprofundada nota-se que a autora soube trazer a nós leitores a riqueza de séculos passados sem um arranhão, deve-se ao livro apontamentos que solidificam seu trabalho.
A autora apresenta uma ficha técnica primorosa, começando pelo designer Victor Burton, que junto a Rosana desempenharam um trabalho digno de palmas.
“Victor Burton é um designer que dedicou a maioria do seu trabalho ao livro. A fascinação por este objeto começou ainda na infância devido ao contato com as obras raras da biblioteca da família, o que aguçou o desejo de se tornar designer exclusivamente para projetar livros. Sua atuação no mercado editorial brasileiro começou no final dos anos 1970, na editora Confraria dos Amigos do Livro. Como o maior interesse de Victor no livro é a relação entre texto e imagem, os livros iconográficos se tornaram seu principal objetivo e são nos livros desta natureza onde melhor conseguimos visualizar seu estilo. Victor desenvolveu uma linguagem gráfica própria que redefiniu o padrão do mercado editorial brasileiro”.
Da primeira a última página, o projeto conta com ilustrações riquíssimas e de muita história. Como carioca da zona norte, tive uma parte da infância na Quinta da Boa Vista, e quando deparei-me com a foto do palácio real, hoje Museu nacional, nas páginas 68 e 69, fui aos céus. Posso dizer que foi fantástica a experiência.
O pintor austríaco Thomas Ender através de uma aquarela, para nossa sorte deixou essa história do tempo muito bem registrada.
Falando em Áustria, na página 88, temos uma bela imagem de Leopoldina, e um parecer que não sabia. A Arquiduquesa, tinha dois candidatos, além de D Pedro, havia o Rei da Saxisônia, e em 1816, ela decidiu vir para o Brasil. Sua decisão apoiava-se no sentido da predileção dos Bragança pela arte da música.
“Agora estou mais empenhada na música, que é muito apreciada no Brasil, e quero aproveitar todas as oportunidades para me tornar popular em meu futuro país.”
Palavras da princesa, que estudou piano com o sucessor de Mozart da Câmara Imperial, Leopold Kozeluch, um homem severo.
O que podemos dizer, faço um adentro nesse parágrafo. A Leopoldina devemos tanto, primeiro por ter coragem em desafiar a coroa portuguesa, e como princesa regente convenceu o príncipe regente a romper com o próprio país de origem e declarar a Independência do Brasil, inclusive foi ela que assinou a Declaração de Independência do país em 1822. Sinto pela vida que D Pedro proporcionou a ela em terras brasileiras, a história não é das melhores, sem contar ela parecia ter entendido desse país bem mais que ele, ao entender que aqui a música faria morada. Um grande salve a essa mulher, parabenizo a autora pela honrosa menção a Leopoldina neste livro.
O livro faz uma viagem ao tempo, na história propriamente dita, isso é tão bem-vindo para quem procura entender um pouco de tudo, que chego a ficar deslumbrada.
O livro nos leva ao abolicionismo também. Por mais pouca simpatia que eu tenha para por D Pedro, devido à vida que proporcionou a Leopoldina, a inteligência, as respostas que ele dava eram fantásticas.
Certa vez mandou desalojar um grupo de homens importantes para os músicos, a seguinte resposta: “Não tem importância, com uma pena eu faço um marquês, um conde, um ladrão, mas nunca um músico ou um cantor”. Penso que alguns políticos deveriam ler esse livro, na verdade, engolir essas palavras.
Quanto a escravidão, tanto ele como José Bonifácio, eram antirracistas, eu não sabia, inclusive D Pedro facilitou à imigração, dando início a implementação da abolição no Brasil, no entanto, não prevaleceu, pois conservadores e escravocratas na Assembleia eram maioria, e o projeto foi adiado. A velha política, que até hoje se faz igual, só mudou os nomes…
D. João, nomeou José Maurício como mestre da capela e organista, que ocupou o cargo até a sua morte, mas a coroa quando chegou ao Brasil se rebelou contra a escolha, pois o padre padecia do “defeito de cor”, por não ser branco, logo entende-se que os Bragança não eram mesmo tão racistas como eu imaginava.
O livro fala sobre a obra de José Maurício que compôs aos 16 anos, tudo isso está registrado no livro, e com fotos do padre.
A autora é muito delicada quando menciona as composições, convidando aos leitores a degustá-las por meio de QR codes, muitíssimo contemporânea.
As menções e figuras do teatro João Caetano, deixa em evidência a queda pelas artes da família real. O teatro foi inaugurado em 1813, e lá grandes nomes marcaram sua história, no teatro: Domingos Jose. Visconde de Araguaia, Martins Pena e João Caetanos dos Santos, que vieram depois dos espetáculos importados de Portugal.
Hoje o teatro continua existindo ou resistindo, sendo palco para Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Bibi Ferreira, entre outros, mas mantendo portas abertas para a música, sendo um dia palco para Bethânia e Gal Costa.
E D. Pedro?
Já podeis da Pátria filhos
Ver contente a Mãe gentil;
Já raiou a Liberdade
No Horizonte do Brasil
Já raiou a Liberdade
Já raiou a Liberdade
No Horizonte do Brasil
Brava Gente Brasileira
Longe vá, temor servil;
Ou ficar a Pátria livre,
Ou morrer pelo Brasil.
O Hino da Independência foi escrito por ele, e outras inúmeras composições. Enquanto o mundo pegava fogo, enquanto Napoleão aprontava pela Europa, D, Pedro, longe do pai, estudava música com Marcos Portugal.
Ao virem para o Brasil, todo o acervo de D. João não ficou para trás, e assim foi criada a Biblioteca Nacional. Uma boa quantia foi oferecida ao professor do menino D. Pedro para ele vir e continuar a educar musicalmente a criança. São inúmeras composições de D. Pedro, inclusive fez sucesso em Paris após apresentar-se no Teatro dos Italianos com suas criações. Eu não tinha ideia da quantidade obras que ele deixou, inclusive a autora deixa no livro todos os endereços de cada uma delas.
Tudo isso e muito mais no livro, como eu mesma disse: uma fonte maravilhosa de conhecimentos.
Após a leitura desse livro pude entender um pouco mais do país que vivo, entender que por influência da família real, a música erudita permeou por aqui durante um bom tempo, sendo fonte de estudos para Villa Lobos, por exemplo, entre outros grandes compositores brasileiros. Entendi que o Brasil é mesmo uma junção de povos diferentes, e não adianta querer apagar nenhum deles, porque a história está aí, o que está coberto, será descoberto.
Através desse livro entendi muito porque nós somos um povo festivo, temos no sangue a inquietude de D. Pedro, entendi também do hoje, do agora, entendi quando a escola Mocidade Independente de Padre Miguel, no samba enredo deste manda o artista Debret chupar manga, diante da Arte da Tarsila do Amaral.
Por mais que tenhamos adquirido nossa identidade artística, temos um passado, seja no teatro, cinema, música, artes plásticas ou na dança, esse passado também tem marcas portuguesas, e não adianta negar, essa miscigenação está em todo lugar.
Obrigada Rosana por tanta informação, por sua profundidade nas pesquisas e parabéns por sua historiografia que desnuda tanto do D. Pedro!
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SINOPSE
A musicista e pesquisadora Rosana Lanzelotte lança o livro “Já raiou a liberdade – D. Pedro I compositor e a música de seu tempo”, pela editora Capivara. A trajetória musical de Dom Pedro I, praticante de diversos instrumentos musicais, é desconhecida por muitos.
A publicação é fruto de quatro anos de pesquisas sobre as obras de D. Pedro I, com atuação in loco em bibliotecas de países como Brasil, França, Portugal e Áustria, que resultaram em dezenove edições.
“Já raiou a liberdade” é um encontro entre a contemporaneidade e o passado. Se por um lado, o leitor pode ter acesso aos bastidores da história do país, por outro, ele se transforma em um leitor-ouvinte, uma vez que as páginas do livro contam com QR Codes que levam aos áudios e/ ou vídeos das composições. Dessa forma, a experiência da leitura ganha novos contornos.
“Trata-se de um livro sobre música e História. Por isso, nada mais adequado do que sugerir que o leitor ouça os repertórios.”, conta a pesquisadora.
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