Nessa matéria entrevistamos Sérgio Patto, psicólogo especialista em infância e adolescência, narrador de Dungeons & Dragons, o maior jogo de RPG do mundo, além de autor do livro “McUlster”. Sérgio irá contar um pouco para a gente sobre como os games podem auxiliar o desenvolvimento emocional e cognitivo dos jovens, e quais são os danos se a prática se tornar o que se chama de comportamento aditivo do Transtorno de Jogo pela Internet (TJI). Além disso, Sérgio nos conta mais sobre suas inspirações, o processo criativo e as mensagens que espera transmitir com sua obra.

Alertas e cuidados com os games
Vivente Andante: Sérgio, acredito que a maior preocupação dos pais é com o excesso de tempo que os jovens nos games, então gostaria de começar perguntando sobre qual os danos do comportamento aditivo do Transtorno de Jogo pela Internet (TJI)?
Sérgio: Isso vai ocasionar perda de visão, perda de audição e doenças relacionadas à postura. Dificuldade de concentração, aumento de agressividade, ansiedade e uma potencial depressão. Então, você pega todos os sintomas clássicos de um usuário de drogas, os clássicos, e soma isso a alguns problemas físicos. Repare na quantidade de crianças com menos de seis anos usando óculos, por exemplo. Você começa a entender o prejuízo disso aí já visivelmente na sociedade.
Pesquisa universitaria
Vivente Andante: Segundo o Instituto de Psicologia da USP, 28% dos jovens de 12 a 14 anos que jogam videogame no Brasil, consomem games de forma excessiva. Por que você acha que isso acontece?
Sérgio: Basicamente, tem alguns vetores. O primeiro é família, então pais que não estão tão presentes assim, ou por trabalharem demais, cargas horárias realmente muito puxadas, ou por preguiça mesmo, porque não querem ter essa disponibilidade. E no fim dá menos trabalho deixar na frente da tela. E tem também os vetores de vício. Então, você tem um vício, que até a própria tela azul já tem um componente que vicia. Os jogos são desenhados hoje em dia para a liberação de dopamina tal qual as redes sociais. É num esquema muito de Pavlov mesmo, que você libera o estímulo e tem a recompensa.
Em terceiro lugar, tem a questão da socialização. É muito mais fácil socializar online do que offline. Você pode falar o que quiser, para quem você quiser e quase nunca alguma coisa acontece. Na socialização presencial, isso vai ter uma resposta para você. Então acho que esses são os três principais fatores.
A prática dos games pode virar vício?
Vivente Andante: Como podemos saber qual o limite entre a prática saudável e o vício? E quais são os sinais de alerta com os quais devemos nos atentar?
Sérgio: Em se tratando de criança e adolescente não existe limite saudável para os games. O uso é nocivo, ponto. A gente tem que começar a entender isso. Para deixar claro aqui também, eu fui gamer, já tive recorde no atari do Defender, eu tive recordes mundiais de jogos de carro e eu fui o terceiro melhor jogador do mundo em Demon’s Souls, no ano de lançamento, então eu sei do que eu estou falando dos dois lados. Não existe limite, não existe prática saudável quando a gente pensa numa criança ou um adolescente jogando videogame. Simples assim.
Os sinais de alerta, que nós já estamos aí incorrendo em vício: irritabilidade, a pessoa está mais irritada, ele está quebrando o computador ou o controle, está irritadiço nas tarefas cotidianas; tem dificuldade de se concentrar; olhos muito secos, muito avermelhados.
O tempo de uso é uma coisa importantíssima, que não tem nem no DSM, o livro que guia a psiquiatria ocidental. Lá, não tem um tempo de uso quando a gente fala de transtorno de jogo. O tempo de uso é um vetor. A criança não deve jogar videogame e um jovem não pode passar de meia hora. A vida está demandando, tem muita coisa pra fazer; o jovem não pode ficar ocioso.
Existem games mais nocivos?
Vivente Andante: Você pode nos dizer quais os tipos ou games específicos que necessitam de uma atenção maior para não gerar um comportamento excessivo?
Sérgio: Olhar a classificação indicativa é um caminho, mas ainda acho que não seja o melhor norte para os pais. Isso porque já foi muito melhor a classificação indicativa no Brasil. Hoje em dia eles estão pecando muito, liberando jogos completamente inapropriados para um público que não tem condições de lidar com certas questões. Mas o que eu mais gosto de orientar para os pais que eu atendo, é joguem antes os jogos, conversem com pessoas que já jogaram, informem-se e vejam se aquilo ali parece adequado ou não. E aí se você somar isso com a classificação indicativa, dá uma boa noção se o game é apropriado ou não.
Vivente Andante: Quais os seus conselhos para quem não consegue administrar bem o tempo nos games e ultrapassam os limites saudáveis?
Sérgio: Os limites saudáveis na casa da criança não existem e eu diria que nos adolescentes também não. Mas eu colocaria meia hora por dia ou uma partida. Uma partida de League of Legends dura mais ou menos 40, 45 minutos. Então, uma partida por dia, sendo muito generoso está de bom tamanho, ou meia hora. Mais do que isso, não tenha dúvidas, você está incorrendo em excesso.
Existem beneficios nos games?
Vivente Andante: Agora falando do lado bom, quais os benefícios que os games trazem emotiva e cognitivamente?
Sérgio: Emotiva não tem nenhum, não existe lado bom emocional, psicológico do uso de videogame, simples assim. Cognitivamente tem alguns benefícios, de localização de objeto, de coordenação motora-fina, de resolução de problemas simples. Mas pensa no seguinte: dê uma caixa de ferramentas para uma criança de 12 ou 15 anos e monte uma coisa, como um armário ou uma estante para praticar. Isso vai desenvolver a habilidade de coordenação motora-fina muito melhor. Você vai ter muitos outros benefícios, inclusive emocionais e psicológicos muito melhores, do que os videogames nos trazem. Esse benefício cognitivo que ele traz, que é pequeno, mas existe, de fato, não vale o preço que se paga para ter esse benefício.
O hábito já venceu?
Vivente Andante: Você tem algum caso para compartilhar de alguém que utilizou o hábito de jogar de forma positiva e quais os bons frutos que ele colheu?
Sérgio: Eu já fui pró-player, não fiz dinheiro com games, mas eu fui. Eu já atendi vários pró-players que são patrocinados. Essa galera está no benefício óbvio de estar fazendo dinheiro. A gente está falando de 0 a 1%, da população dos games. Só que realmente faz dinheiro, que são streamers também, então é uma pessoa que faz dinheiro jogando. Então para esse público muito específico, existe um ganho social, monetário e a pessoa tem que saber avaliar e ponderar. Isso estamos falando de jovens adultos, de 18, 16, 17 anos para cima. Então, claro, essa pessoa deve ser capaz de ponderar os benefícios dos malefícios e os pais devem ser capazes de orientar quanto a isso e os próprios profissionais orientar em relação a esse tipo de dinâmica, em que pese, nenhuma criança deveria estar fazendo isso.
Tirando esse 0 a 1%, você tem pessoas que argumentam que tem um benefício. Então, vamos pegar um exemplo mais simples, aquele jovem ou o próprio adulto que chega em casa e fala que está cansado, que no momento em que descansa, quando relaxa, joga videogame. A vida está acontecendo. Então é aí que a coisa se perde. Você tem uma casa para arrumar, tem um filho para criar, ou alguém para conversar. Eu tenho amigos que são assim e eu já fui assim, já tive esse argumento adulto. É tudo falso, não é real. Se você prestar atenção na vida real, você vai perceber que não tem espaço para esse tipo de relaxamento.
Os games te tiram da realidade
Sérgio: Isso não vale como um relaxamento porque na verdade é uma fuga da realidade. Homem, mulher, não interessa, chegou do trabalho, tem coisa para arrumar em casa? Arrume a casa, você mora lá também, não? E depois você vai relaxar como? Esteja com a sua esposa, esteja com seu marido. Todo mundo foi dormir, quer tirar agora, meia horinha? Vai ler um livro, fazer origami, um trabalho manual, vai construir alguma coisa. Lembra? Pega a caixa de ferramentas, vai construir um negócio. Aí sim, a gente começa a mudar muito do que está nos processos neurológicos dessa pessoa.
Vivente Andante: Colocando na balança, você acha que a prática de jogar videogame atualmente é mais nociva ou mais benéfica?
Sérgio: Muito mais nociva.

Dungeons & Dragons
Vivente Andante: Quais são seus jogos preferidos? E sobre sua experiência como narrador de Dungeons & Dragons, o que você mais gosta no jogo e qual foi seu maior desafio para aprender a narrar?
Sérgio: Um dos meus games preferidos é Demon’s Souls. Você pode ver que não é um jogo tão antigo assim, eu estava jogando ainda depois dos 30. Maravilhoso, tão maravilhoso que eu joguei Dark Souls, Dark Souls 2, e Dark Souls 3, que eu já joguei tirando o pé, já comecei a parar com os games. E o Elder Ring, que é a continuação, eu nunca vou comprar, nunca terei. Justamente para eu não ter esse erro de novo.
Sobre D&D, meu maior desafio foi aprender inglês. Eu sou de uma época em que os livros eram uma cópia, uma Xerox reduzida. Então cada página virava duas, porque eu não tinha dinheiro pra pagar a cópia de todas as folhas. Eu não sabia falar inglês, então ficava lendo o livro com o dicionário e anotando. Então o meu maior desafio era realmente aprender inglês sozinho, porque era necessário para poder jogar o jogo.
Esse é um jogo que desenvolve a criatividade. Se você se permite jogar sendo mestre ou player, vai desenvolver a sua criatividade. O mestre é óbvio, tem que criar o todo, enredo, os personagens, tem que criar os desafios, e ele tem que lidar na hora das escolhas dos jogadores. É bem rico. Enquanto jogador, você se vê diante de situações que você jamais se veria no cotidiano. Então como é que você faz para tirar três trolls de uma caverna sem morrer? Você se vira e aí vai criando de novo novos caminhos neurológicos, e novos caminhos de resposta, você vai aperfeiçoando o seu repertório e a sua criatividade.
O Livro “McUlster”
Vivente Andante: Agora sobre sua obra “McUlster”, como foi integrar sua experiência como psicólogo infantojuvenil à construção dos personagens e da trama do livro?
Sérgio: Não dá para escapar, né? Quando eu estava escrevendo, muitas características de jovens que eu já atendia me vieram à mente para construir os personagens. Até mais do que minhas próprias. É óbvio que tem muita coisa minha, o casaco verde que o João usa, eu tenho até hoje, meu casaco favorito de jovem adulto. Tem um sintoma de depressão, de ansiedade, aquela insegurança básica, como lidar com o mundo. Mas usei muitos elementos da minha prática clínica.
Vivente Andante: Você traz elementos do RPG para o desenvolvimento do enredo e dos personagens de “McUlster”?
Sérgio: Trago. Eu escrevi o livro como eu escrevo as minhas aventuras de RPG. Que é mais ou menos assim: crio um cenário e penso que quero criaturas fantásticas nele e vou aperfeiçoando. No começo, o livro se passava em Nova York, depois eu mudei para Brasília. Então, em Brasília, criei as personagens como se fosse um jogo de RPG. Depois eu fiz o final do livro e comecei a desenrolar a trama, comecei a desenvolver, fui, voltei. Que é exatamente como eu estruturo as minhas aventuras no RPG.
“McUlster” e a conexão com a psicologia
Vivente Andante: “McUlster” aborda temas como responsabilidade, amadurecimento e autodescoberta. Como esses temas se conectam com os desafios que você vê na sua prática clínica com adolescentes?
Sérgio: Ser adolescente hoje em dia está difícil. A gente pode até dizer que sempre foi, mas acredito que não. Eu acho que o meu livro é um livro que os adolescentes vão ler e vão se identificar de alguma maneira. Vão olhar para aquilo ali e falar “cara, é isso. Tá, mas e agora? Como é que eu saio disso?” E aí, sim, eu trago algumas soluções. Neste livro eu levanto mais problemas do que soluções. E na continuação eu vou trabalhar isso de forma ainda mais redonda.
É um enredo gostoso de ler. Tem os elementos da fantasia, que eu gosto muito, mas muito útil para os jovens, porque eles vão ler e se deparar com uma solução para os próprios dilemas e se propor a tentar novos caminhos. E, quem sabe, proporcionar bons resultados.
Planos para o futuro
Vivente Andante: Você tem planos para continuar a história de “McUlster” ou explorar outros personagens e universos dentro desse mesmo mundo?
Sérgio: Realmente pretendo continuar, eu tenho na minha cabeça mais ou menos 1.500 páginas de livro, eu imagino. Esse primeiro é realmente assim, uma introdução ao universo, aos personagens, aos vilões. E fui jogando muita coisa que eu não fechei – quem já leu vai perceber isso. Não dei resposta para muitas questões do livro, justamente mirando uma continuação.
Conselhos para os jovens
Vivente Andante: Para finalizar, que conselhos você daria para jovens escritores que desejam criar suas próprias histórias de fantasia, especialmente aqueles que também têm uma paixão pela cultura geek?
Sérgio: Primeira coisa, parar de jogar o videogame. Games não ajudam muito na criatividade, porque tudo já é pronto. A galera que curte cultura geek, sugiro jogar RPG, encontrar um bom grupo ou chamar os amigos para jogar – ainda que seja uma sessão de one shot, que tem começo, meio fim, numa sentada. Mas jogue, vocês vão perceber que ajuda demais, e a experiência vale demais a pena.
Por fim, uma coisa que eu não fiz para escrever o meu livro: estudem. Existem livros de escritores como o Jordan Peterson, o escritor americano – ele tem mais de 20 bestsellers publicados e ele sabia escrever. Tem livros que trazem estrutura antropológica de literatura, novos modelos de histórias possíveis de serem contadas, todas as histórias do mundo estão dentro desses novos modelos. Eu não fiz isso. Confesso que eu me arrependo. Fui mais intuitivamente, talvez por experiência como mestre.
E, por fim, sempre escreva, sabendo que dá trabalho mesmo, é muito trabalho, é muito compromisso. Não vai ficar bom como vocês acham que vai ficar. Não, nós não temos um “Senhor dos Anéis” dentro da gente de cara, vamos deixar claro. Mas sem isso não dá. Então, no mínimo, larga o videogame e vai escrever. Se der para jogar RPG, ótimo. Se der para estudar, então melhor ainda.
Considerações Finais
Agradecemos a Sérgio Patto por compartilhar conosco suas experiências como psicólogo, narrador e escritor. Seja sempre bem-vindo ao nosso canal e ao nosso portal.
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