O filme “A Terra Negra dos Kawa”, do diretor Sérgio Andrade, estreia nos cinemas nesta quinta-feira, dia 20/04/2023. O longa-metragem traz uma história sobre mistério, misticismo e investigação com base no conhecimento de uma cultura indígena.
A terra negra dos Kawa
A terra é o elemento principal da narrativa de “A Terra Negra dos Kawa”. O personagem do indígena Anderson Kary Báya aparece, inicialmente, em uma busca de experimentação com sucatas abandonadas pelos não-indígenas. Ele busca canalizar a energia da terra para criar uma forma de contatar os ancestrais.
Segundo Anderson, seu personagem é “um cientista que experimenta, mas para beneficiar a humanidade”. O patriarca o alerta, no entanto, que esse conhecimento e essa energia devem ser usados com cautela (uma mensagem importante dentro do contexto do filme). Enquanto isso, cientistas não-indígenas (Mariana Lima e Felipe Rocha) estão pesquisando a mesma terra, e estão totalmente surpresos e instigados com as propriedades energéticas e sensoriais dela.
Historicamente, esta terra foi cultivada e preparada ao longo de muitos anos, de uma maneira extremamente sustentável, onde ela pode se renovar sempre, desde que não seja retirada de forma irrestrita. Ou seja, diferentemente de como a sociedade não-indígena, costuma fazer com os recursos da natureza.
Aliás, confira nossa conversa com o diretor Sérgio Andrade e o ator Felipe Rocha, e siga lendo:
A personagem da indígena Kay Sara realiza esse elo entre culturas ao partilhar do segredo da terra com os cientistas não-indígenas, embora sua mãe a avise sobre os riscos dessa ação. Por vezes, sua personagem olha diretamente para o espectador. Esse elo com os cientistas também é um contato com quem está assistindo ao filme.
Os personagens indígenas são integrantes de uma família, em cujas terras foi realizado o filme. Além de Kay Sara e Anderson Kary Báya, seus pais Ermelinda Yepario e Severiano Kedassere (que infelizmente, faleceu em 2021) aparecem como guias e orientadores dos jovens.
Um outro ritmo
“A Terra Negra dos Kawa” apresenta um ritmo que foge da obviedade da cadência acelerada dos filmes atuais. Especialmente os do gênero de ficção. Os planos são amplos e visam criar um vínculo entre o espectador e aquele local. A ação que se passa dentro dos planos é cativante, e por vezes, misteriosa. É também uma forma de se permitir absorver um novo olhar sobre o amor pela terra.
Logo no início do filme, dois trabalhadores recebem a oferta de um chá pela indígena Ermelinda Yepario. À primeira vista, é um convite a eles e aos espectadores. Ou seja, um convite para desenvolver um olhar mais amoroso e sensível em relação à terra e ao universo em si.
Uma trilha natural
Pode-se perceber o mesmo em relação à trilha musical. Ou poderíamos chamar de trilha natural? Pois são os sons da natureza que criam a atmosfera e definem uma cosmovisão em associação com o ritmo dos planos e da montagem.
Nesse sentido, “A Terra Negra dos Kawa” tem um trabalho de captação e edição de som, que mistura os sons naturais com a música da banda americana Liars, e gravações feitas na Amazônia no início do século XX, pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. Segundo Sérgio Andrade, “houve uma conjunção perfeita de sons relativos ao tema e ao som da terra”.
Conhecimento por lucro ou por humanidade?
Um dos cientistas (Marat Descartes), tem a percepção da exploração da terra para o lucro. Tal qual existe hoje, por exemplo, com o petróleo. Afinal, a riqueza e os lucros estão acima do bem que um recurso natural possa servir à humanidade. Logo, isto estaria em segundo plano.
Já o cientista (Felipe Rocha), com quem Kay Sara compartilha a existência da terra, tem uma percepção diferente. Ele quer usá-la para o bem da sociedade. Mas sua visão, por outro lado, também é a de um colonizador que quer espalhar e divulgar a terra, por meio da exploração, que acabaria não diferindo muito da exploração por ganância.
O tempo e os significados
A princípio, as filmagens de “A Terra Negra dos Kawa” aconteceram em 2017, com o filme tendo sido finalizado em 2018. Depois que passou por alguns festivais, o lançamento foi adiado por um tempo, em especial pela pandemia da Covid-19.
Se por um lado podemos dar vários significados ao tempo, por outro lado, o tempo também pode acentuar e produzir significados. Como resultado, ao ser lançado em um momento conturbado no país, onde as demarcações e proteção de terras indígenas têm sofrido com invasões, o filme adquire uma potência em sua mensagem. Ou seja, a metáfora da terra teve seu significado amplificado de forma significativa.
Em síntese, a relação dos indígenas com a terra não é de mera utilização ou exploração, como ocorre de forma irresponsável e inconsequente por parte do garimpo e desmatamento ilegais. Portanto, existe um vínculo que não é possível descrever apenas com palavras. Os personagens não-indígenas experimentam a sensação do pertencimento a um cosmo, que vai além de suas existências, por meio da terra. Os espectadores podem entender este elo durante e após a exibição do filme.
Cinema brasileiro e culturas dos povos originários
Quando eu era criança, tinha dois livros (ainda os tenho) de contos e fábulas dos povos originários da América Latina: “Como surgiram os seres e as coisas” e “Contos de assombração”. Eu lia as histórias diversas vezes e sempre ficava visualizando mentalmente como elas seriam se fossem filmadas.
Filmes como esse, que nos trazem uma visão profunda e instigante de alguns aspectos culturais dos povos originários, podem servir de incentivo a que mais histórias assim sejam produzidas dentro do audiovisual brasileiro.
Onde assistir “A terra negra dos Kawa“
O filme estreia nesta quinta-feira, 20/04/2023, um dia após o dia dos povos indígenas (19/04). Aproveite o feriado do dia 21/04 para conferir este filme incrível! Não deixe para depois. Consulte a rede de cinemas de sua cidade para encontrar sessões disponíveis.