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Cultura

Boletim de Ocorrência | Por Eleize Silva Ferreira

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em

Sede, poesia de Paula Albuquerque. Boletim de Ocorrência

Fui preencher um boletim online para registrar um assalto do qual fui vítima no domingo passado ao voltar para
casa. “Muito prático”, pensei na hora. Sem idas e vindas e sem mais gasto de dinheiro que nessa hora nem tinha mesmo, havia ido tudo na bolsa. Munida com meus dados comecei a preencher a papelada digital até que esbarro em um velho obstáculo conhecido. Na opção que informa sobre cor e raça dou de cara com as opções:
● Branca
● Preta
● Parda
● Indígena
● Amarela
● Não declarada

Empaquei ante a difícil decisão. Não que eu tenha nenhuma dificuldade em termos de identificação enquanto
pessoa de cor. Filha de um homem preto que casou com uma moça branca e loura para “limpar” a família, como diziam antigamente, neta e bisneta de negros que nasceram em cativeiro (vi na certidão que minha avó nasceu em 1918, 30 anos após a abolição), sempre tive muito claro em minha mente a minha genealogia, descendência e ascendência africana. A questão aqui não era eu, mas sim, como me viam os outros.

Cor

Desde que me entendo por gente, tive que conviver com a dificuldade das pessoas ao meu redor em decidir sobre
minha cor e etnia. Dependendo de vários fatores, contexto da situação, hora e local do acontecimento, da visão, e até mesmo do humor do avaliador em questão, já fui declarada preta, branca, negra, morena e mulata, conforme a ocasião e até mesmo de indígena, amarela e até parda. Para ofender, eu era a preta gaiata. Para adular era
minha branca.

Negra para me colocar no meu lugar, morena tropicana para me namorar, mulata para me conformar que apesar de negra eu era uma negra bonita, uma excelente companhia para um momento de diversão, mas não uma boa companheira para uma vida inteira, não para subir ao altar, as avós não queriam ter netos com cabelo encarapinhado, duro de pentear, signo irrefutável de um passado ancestral marcado à ferro, fogo e muita pancada. Neto de cabelo duro, isso não, nem pensar.

Na família por parte de pai era outro impasse. Preta, branca ou morena? Depende também. Uma tia das antigas,
preta retinta, costumava me chamar de branca com profunda satisfação, e, para ela, constituía uma verdadeira ingratidão quando eu retrucava irritada: Sou branca não, tia, sou negra. A minha resposta belicosa sempre causava desavenças entre nós duas. Uma verdadeira ofensa, profunda ingratidão!

Tanta dedicação para limpar a família, ter o capricho em desposar moça branca, e eu insistia em dizer aquele absurdo. Alguns parentes também me viam como aquela que havia dado azar de nascer com um ‘’cabelo crespo’’, uma pena que a manobra de clareamento não havia dado certo, pois reza a lenda que sangue de preto é mais forte e o resultado era eu nascer com a pele clara e cabelo de nego, que azar, azar mesmo, diziam balançando a cabeça com tristeza. Tu é até uma mulher bonita, mas esse cabelo.

Azar?

Uns, um tanto mais otimistas, não criam que eu era azarenta e de fato tivera muita sorte, pois havia muitos
recursos já nos anos 80, para disfarçar a minha “disfunção genética e social”, por essa época já tínhamos do pente
quente ao henê, passando pela touca de gesso (entendedoras, entenderão), e daí era só amansar o brabo que eu poderia passar livremente como uma mulher branca na sociedade e ter mais acesso a emprego ou marido.

É, a vida ensina. Hoje, tenho consciência dos motivos que empurraram a velha tia que nasceu com o “pé no tronco”
a rejeitar na sobrinha as características que a poderiam privar de um futuro melhor. Um destino mais claro e iluminado. Agora entendo porque ela não entendia a minha cisma em querer ser preta quando o Deus branco, não Obatalá ou Xangô, me havia concedido a benção de nascer com a pele clara. Agora entendo, mas foi preciso a vida ensinar. Hoje eu entendo, o meu dilema ancestral. No lado que se julgava branco, pelo menos, não havia
dúvidas. Eu era preta mesmo. Pelo menos da parte deles havia um consenso.

As horas vão passando e eu fico um bom tempo e eu com o dedo em riste paralisado, numa dúvida que me
acompanhou na infância e daí para a vida adulta. Navego nessas reminiscências, em lembranças de um passado não tão passado assim, pois, não faz muitos dias, fui duramente questionada por uma conhecida sobre o uso do turbante e a predileção pelas minhas tranças nagô, isso é coisas de preto, mermão. E ante a minha invariável resposta: Vixe, Maria, mulher, tu não é preta, não. Não diga isso, gosto tanto de você…. Interpretando: se tu for preta mesmo, teremos que cortar amizade.

Faço todas essas reflexões enquanto encaro a tela do notebook e tento decidir que opção me encaixo na opinião dos que mais tarde lerão a minha queixa. Pois dependendo de quem estiver do outro lado, minha informação poderá ser vista como verdadeira ou falsa. Impasse.

Olho o relógio, duas horas se passaram. ‘’Isso era pra ser prático’’. Então rolo um pouco mais o mouse e pra
encurtar a história clico naquela última opção:
● Não declarada.
Fecho meu computador e vou para cama.

Ademais, ouça:
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O Abrigo de Kulê | Livro aborda questões raciais e sororidade
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13 Comentários

13 Comments

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    • HILDA MARISE FERREIRA

      26 de outubro de 2021 at 14:28

      Que texto maravilhoso, amei o enredo. Muito bom

      • Eleize Silva Ferreira

        26 de outubro de 2021 at 20:44

        Que bom que tenha gostado, Hilda. Fico feliz em ter lhe proporcionando uma boa experiência.

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  7. Larissa Rejane Silva Brito

    26 de outubro de 2021 at 10:08

    Fiquei emocionada e mexida. Esse texto é tão real e necessário que parece muitas de nós falando.

    • Eleize Silva Ferreira

      26 de outubro de 2021 at 10:40

      Olá, Larissa. Que bom que gostou! História de nossa vida. Mulher preta, preta mulher.

  8. Elizabeth Freitas

    26 de outubro de 2021 at 10:45

    Estou reflexiva com a escrita e pensando muito na questão racial e o colorismo. Muitas vezes estamos em um não-lugar.

    • Eleize Silva Ferreira

      26 de outubro de 2021 at 11:02

      Olá, que bom que tenha entrado nesse estado reflexivo, Elizabeth, pois esse é o ponto de mutação. A partir daí é que mudamos nossa perspectiva interior, a percepção que temos de nós mesmas para enfim encontrarmos o nosso lugar.

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Crítica

Benjamin, o palhaço negro | Uma homenagem ao primeiro palhaço negro do Brasil

Publicado

em

Parece até piada que notícias como a do racismo sofrido pelo jogador de futebol Vini Jr. ou um aplicativo que simula a escravidão tenham saído enquanto “Benjamin, o palhaço negro” está em cartaz. Infelizmente não é. Assim como não é piada e nunca deveria ser considerada como uma as coisas que um certo “humorista” disse no vídeo que, com razão, foi obrigado a ser retirado do ar. Infelizmente, a luta contra o racismo continua, desde a época em que Benjamin de Oliveira viveu, de 1870 a1954. Cem anos e as atitudes dos racistas continuam iguais! É um absurdo!

Mas sabe o que mudou? O combate. Como fica bem óbvio no texto do musical, agora não se sofre mais calado. Agora há luta. Agora há regras, há leis, os racistas não vão fazer o que querem e ficar por isso. As pessoas pretas vão exigir o seu lugar de direito e o respeito de todos. Já está mais do que na hora, né?

Mas estou me adiantando para o final da peça. Vamos voltar ao começo.

Quem foi Benjamin de Oliveira?

Benjamin de Oliveira foi o primeiro palhaço negro do Brasil, em uma época em que pessoas pretas não eram aceitas ou bem-recebidas no mundo do entretenimento (e no mundo como um todo, sejamos sinceros). Além disso, ele foi o idealizador e criador do primeiro circo-teatro. Mas por que, então, não conhecemos a história dele?

Por que vocês acham?

Como os atores dizem no início do musical idealizado por Isaac Belfort, a história do circo foi embranquecida, assim como todas as histórias que aprendemos. A peça vem, portanto, para contar a história verdadeira e colocar luz em cima de quem deveria, desde sempre, ter ganhado os louros de sua invenção. Em um espetáculo intenso, sensível e moderno, o público aprende sobre quem foi Benjamin e, também, a valorizar os artistas negros atuais e da nossa história. Mostrando, assim, pra quem tinha dúvidas, quanta gente preta de talento existe e sempre existiu. Só falta, como disse Viola Davis, oportunidade.

O espetáculo

No palco, cinco atores. Eles se revezam para interpretar Benjamin, uma sacada ótima. Uma sacada que faz todo mundo querer se colocar no lugar daquele personagem. Uma sacada que faz qualquer um não conseguir não se colocar no lugar daquele personagem. E sentir todas as dores que ele sentiu. Para pessoas brancas, como a jornalista que vos fala, que nunca vão saber o que é sofrer o racismo na pele, é um toque certeiro pra empatia. Mesmo que forçada, aos que até hoje tentam ignorar esse mal da nossa sociedade. É necessário.

Outra sacada ótima foram os toques de modernidade ao longo de todo o roteiro, muito bem escrito. Colocar personagens da época de Benjamin agindo como os jovens tiktokeiros e twitteiros de hoje foi primordial pra facilitar a identificação. Mesmo para quem não conseguiria fazer a paridade entre a época outrora e os tempos atuais, o roteiro faz questão de não deixar dúvidas. E fica impossível não reconhecer algumas das personagens mostradas no palco. O espectador vai, na hora, conseguir lembrar de alguém que já conheceu ou viu passar pela internet. Ou vai pensar em si mesmo. E é aí que mora a chave do sucesso da peça: porque o reconhecimento traz a mudança (ou assim se espera).

Um elenco de se tirar o chapéu

Os cinco atores – Caio Nery, Elis Loureiro, Igor Barros, Isaac Belfort e Sara Chaves – sabem muito bem o que estão fazendo. Dão show em cima do palco. Cantam, atuam e se movimentam de forma emocionante. A cenografia ajuda, claro. Assim como a iluminação. E a coreografia. O espetáculo é apresentado em um espaço pequeno, que ajuda ao espectador se sentir dentro da peça. E a força com que cada elemento está em cena – atuação, música, iluminação, cenário – torna difícil não sentir cada cena como se estivesse acontecendo com si mesmo.

Preciso, porém, destacar dois dos atores: Caio Nery e Sara Chaves. Todos em cena estão visivelmente entregando tudo e fazem um espetáculo lindo de se ver. Mas Caio e Sara sobressaem. Destacam-se por ser possível enxergar a emoção por trás dos personagens, e deixarem a peça ainda mais forte e bonita. São dois jovens atores de 20 e poucos anos que, com certeza, ainda vão longe!

Curtíssima temporada

Se você se interessou em assistir “Benjamin, o palhaço negro”, corre! O espetáculo ficará em cartaz somente até o dia 28 de maio, esse domingo. Como mencionado anteriormente, o espaço é pequeno, portanto os ingressos esgotam rápido. Essa não é a primeira vez que o musical fica em cartaz no Rio de Janeiro. Ano passado teve sessão única em novembro e uma curta estadia em São Paulo. Isso porque é uma peça independente. O que resta ao público, além de assistir às sessões do final de semana, é torcer para conseguirem mais patrocínio para seguirem com essa peça tão importante por mais tempo.

Serviço

Benjamin, o palhaço negro

Onde: Espaço Tápias (Av. Armando Lombardi, 175 – 2º andar – Barra da Tijuca).

Quando: 27 e 28 de maio (sábado e domingo), às 20h.

Idealização e produção: Isaac Belfort

Direção geral e músicas: Tauã Delmiro

Direção musical e músicas: Peterson Ferreira

Coreografia: Marcelo Vittória

Design de luz: JP Meirelles

Design de som: Breno Lobo

Direção residente: Manu Hashimoto

Direção de produção: Sami Fellipe

Coprodução: Produtora Alada

Realização: Belfort Produções e Teçá – Arte e Cultura

Crédito da foto: Paulo Henrique Aragon

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