Dirigido por Clarissa Appelt e Daniel Dias, Herança de Narcisa utiliza a força interpretativa de Paolla Oliveira para retratar o poder e a complexidade do legado familiar.
A Herança de Narcisa se insere no território simbólico do chamado healing horror, um subgênero do horror que permite que o gênero se torne instrumento de cura emocional, conduzindo o espectador de um estado de desconforto para um sentimento de reconciliação.
Baseado nas vivências pessoais de Clarissa Appelt, que durante a pandemia precisou retornar à casa da mãe, o filme condensa em menos de noventa minutos uma forte jornada emocional. Acompanhamos Ana, Paolla Oliveira, que retorna ao lar de infância e, nesse espaço carregado de memórias, reencontra não apenas o passado, mas o eco de um relacionamento abusivo com a mãe. Ao lado do irmão Diego, cuja amargura se manifesta na ausência de afeto materno, Ana é conduzida a revisitar traumas, percebendo que aos poucos, começa a se transformar na figura que mais teme.

Paolla Oliveira em cena de “Herança de Narcisa”- Divulgação Festival do Rio
Em um papel duplo, Paolla Oliveira entrega uma performance hipnótica, alternando sutileza e fúria na lenta metamorfose de Ana em Narcisa, processo que simboliza o verdadeiro legado herdado: a permanência da força e da fama da mãe por meio de sua filha, queira ela ou não.
Se Fedora (1978), de Billy Wilder, aborda esse tema sob uma ótica clássica e dramática, Herança de Narcisa abraça o fantástico e o misticismo para representar a persistência do vínculo materno, mesmo após a morte, recorrendo a efeitos práticos cuidadosamente elaborados, criando um clima de horror atmosférico que nunca se sobrepõe ao drama humano. Há também momentos de alívio e ternura, como a cena de Ana e Diego na piscina, um instante de calmaria que rompe simbolicamente a regra da mãe abusiva, cuja presença ainda paira sobre a casa.
O tema da fama e do legado permeia toda a narrativa, destacando-se na montagem que entrelaça passado e presente em um tempo simbólico, quase onírico. Essa fusão temporal cria uma experiência cinematográfica coesa e sensorial, na qual o espectador se vê imerso na espiral emocional dos personagens.
Clarissa Appelt e Daniel Dias, ambos de formação junguiana, constroem um filme repleto de arquétipos universais, estruturando uma relação entre mãe e filha que se expande para um campo mitológico e coletivo, dialogando com figuras como Ariadne, e com o paralelo entre Apolo e Diana, representados por Diego e Ana. Essa dimensão simbólica amplia o alcance da narrativa, que se inicia como um drama íntimo e culmina em um delírio visual e psicológico no terceiro ato. Neste ponto, a fotografia abandona os tons escuros e pastéis do início e mergulha em uma estética exuberante e vedete, irradiando a aura de Narcisa em toda sua potência e marcando o ápice da transformação de Ana.

Paolla Oliveira em cena de “Herança de Narcisa”- Divulgação Festival do Rio
Dentro da discussão sobre o luto, Herança de Narcisa se destaca por seu uso preciso de analogias e simbolismos, explorando o conceito de herança não apenas material, mas emocional e espiritual. A direção de arte, com seus anacronismos propositais, reforça a ideia de um tempo suspenso, onde o passado e o presente coexistem, assim, ampliando o alcance da metáfora central: o luto não desaparece, apenas se transforma, sendo continuamente ressignificado. É esse processo de cicatrização que o filme busca capturar, o momento em que a dor deixa de ser ferida e passa a ser memória.
Distribuído pela Olhar Filmes, Herança de Narcisa venceu o prêmio popular da Premiere Brasil: Competição Novos Rumos do 27º Festival do Rio, um reconhecimento merecido para a produção que combina com tanta maestria sensibilidade, rigor estético e profundidade simbólica.
Siga-nos e confira outras dicas em @viventeandante e no nosso canal de whatsapp!



