O subgênero coming of age existe desde antes de Louisa May Alcott escrever Mulherzinhas, conhecido por retratar o crescimento de seu protagonista, geralmente da adolescência para a fase adulta, estas produções inspiram e ensinam o público sobre fatos normais da vida: o primeiro amor, a primeira desilusão, a primeira menstruação, a perda da virgindade, a vontade de casar, o inicio da faculdade, entre tantos outros momentos marcantes que todo ser humano passa ao longo da vida, mesmo que se recuse a admitir.
O mundo inteiro já produziu coming of age de diferentes tipos, desde os clássicos de John Hughes, até produções britânicas como Sex Education (2019, Laurie Nunn), sempre destacando a aventura de um jovem sonhador, por uma perspectiva ou outra, normalmente relacionado à algum descobrimento sexual de sua parte, porém, geralmente o protagonista destas produções é comumente um homem, e quando é uma mulher, o trato e o comportamento é dosado, este não é o caso de Sempre Garotas.
Segundo a diretora Shuchi Talati: “Os filmes da Índia (e do Ocidente) muitas vezes apagam corpos femininos reais. Seios e bundas são hipersexualizados, mas a masturbação, menstruação, vaginas, etc. são tratados com repulsa ou embaraço. Esse apagamento faz parte da maneira como as meninas são treinadas para serem invisíveis em um mundo que tem medo de sua sexualidade, identidade e voz.”
Confira abaixo o trailer de Sempre Garotas e continue lendo a crítica
Sempre Garotas conta a história de Mira, uma jovem de 16 anos, símbolo de disciplina e responsabilidade dentro da escola, que tem sua vida abalada com a chegada do americano Sri, que também desperta o interesse de Anila, mãe de Mira.
A produção é extremamente agradável, trazendo gosto em ser assistida, porém, ao mesmo tempo ela é rodeada de simbolismos dos mais diversos tipos, entre eles o fato do jovem americano despertar a sexualidade em Mira. Levando em conta o contexto da produção, que se passa durante a década de 1990, lembramos que a Índia estava aberta às exportações norte americanas e havia um nítido conflito entre o tradicionalismo indiano e a “libertinagem debochada” norte americana. Ocasionando este embate entre os códigos morais não ditos, e a eventual subversão de papéis que ocorre ao longo do filme, principalmente da parte de Mira e Anila.
Sempre Garotas pode ser considerado um coming of age clássico, na medida que Mira nitidamente amadurece ao longo da produção, porém, muito além disso, Sempre Garotas é um filme sobre a sororidade feminina, neste caso simbolizado pela recuperação do relacionamento entre mãe e filha.
Relações maternas no cinema não são fáceis de serem construídas de forma orgânica, é comum as produções cederem à famosa disputa de gritos em alguma parte do filme, porém, no caso de Sempre Garotas percebemos um conflito sempre presente, principalmente ao considerarmos a suposta atração sexual que Anila tem por Sri, porém, na mesma medida percebemos um amor fraternal entre duas mulheres que tiveram suas vozes cortadas, que se unem para assim ter um apoio e um suporte dentro do mundo que as rebaixa, e as impede de sentir desejos tão humanos, que Mira descobre ao longo da produção.

Preeti Panigrahi em cena de Sempre Garotas- Divulgação Filmes da Estação
Cenas como sua primeira masturbação com o auxílio de um ursinho de pelúcia, o treinamento de beijos na própria mão e até mesmo a cena em que ela e Sri leem sobre sexo na biblioteca, são vistas como algo natural que qualquer um poderia passar, em qualquer lugar do mundo, esta é a beleza de uma história universal: seu simbolismo ultrapassa barreiras geográficas e permite mensagens sociais com as quais todos os espectadores conseguem se identificar.
A posição de pureza de Mira é destruída ao longo da produção, a personagem fica muito mais leve, é gostoso de enxergar este brilho e sua leveza, porém, sem antes passar por provações e desafios dignas de um herói trágico, todas vinda do seu contraste com o universo masculino, seja a misoginia e o desrespeito de seus colegas de sala, ou os sinais que o jeito debochado e carismático de Sri, é mais uma forma de desrespeito do que qualquer outra coisa.
Dentro de uma sociedade e um mundo tão tradicional, Mira e Anila devem representar a pureza e a castidade, com muita graça, Shuchi Talati subverte este imaginário e traz em Sempre Garotas um retrato honesto sobre descobertas, união e sororidade, dando voz para as vontades femininas enxergadas com repulsa e embaraço, tanto pelo cinema, quanto pela sociedade.
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