O tema da redação do ENEM 2024, Desafios para a valorização da herança africana no Brasil, incentivou reflexões sobre a importância da ancestralidade africana. Juliana Rettich, professora e coordenadora de redação do PB Colégio e Curso, explica que, para avançar, o Brasil deve superar o “epistemicídio” — o apagamento de conhecimentos de origem africana. A Lei 10.639, que determina o ensino de história e cultura afro-brasileira, é um passo, mas ainda enfrenta desafios em sua implementação.
Além disso, o livro A Curandeira Bantu, do PhD em Bioquímica Renato Moreira, aprofunda esse debate e também fala sobre herança africana. O romance histórico, que explora a trajetória de curandeiras africanas no Brasil colonial, conecta as contribuições científicas e culturais dos povos africanos à construção da medicina popular no país. Moreira, professor universitário aposentado, utilizou seu conhecimento científico para ilustrar como essas práticas de cura influenciaram a ciência e a medicina brasileiras.
Em sua obra, Moreira narra a vida de Natula e sua filha Kalinda, capturadas em Angola e trazidas ao Brasil como escravas. As personagens recorrem a saberes ancestrais, ou seja, herança africana, para elaborar chás e unguentos com ervas medicinais, ajudando a tratar a saúde dos escravizados em condições precárias.
Esses conhecimentos, herdados das curandeiras africanas, demonstram a riqueza da medicina tradicional africana, que contribuiu para a formação de saberes medicinais populares no Brasil. O autor ressalta que essas práticas, transmitidas oralmente, refletem uma ciência milenar, muitas vezes invisibilizada pelos currículos eurocentrados que ainda predominam nas escolas e universidades.
Em entrevista, Renato Moreira fala sobre herança africana as referências presentes na obra e como utilizou sua bagagem científica para narrar a trama. Confira:
1. Você tem pós-doutorado em Bioquímica e soma uma vasta bagagem acadêmica nos estudos científicos, tendo passado por universidades da França e da Escócia. Como você equilibra sua formação acadêmica com sua paixão pela História? De que forma essa combinação de conhecimentos se reflete em A curandeira Bantu?
Renato Moreira: A paixão pela história, da minha parte, é antiga e alimentada pela atividade científica, que por sua vez é guiada pela curiosidade. A ciência, como a história, é guiada por perguntas sobre o que acontece e aconteceu com a vida humana. No caso do livro A curandeira Bantu, a ciência é abordada quando tento resgatar a prática de cura, usando plantas medicinais, quer da tradição africana, quer dos povos originários do Brasil.
2. A história narra os conhecimentos científicos das curandeiras angolanas escravizadas, destacando a importância das plantas medicinais e dos métodos de cura ancestrais. Além desse legado, como você enxerga a contribuição dos povos africanos para a consolidação da cultura e da medicina brasileira hoje?
Renato Moreira: A contribuição dos povos africanos na formação da sociedade brasileira é enorme, embora pouco divulgada. O uso de plantas medicinais no processo de cura é do maior impacto na medicina. O resgate de processos de cura tem mostrado que a bagagem cultural trazida pelos negros africanos escravizados, notadamente aqueles homens e mulheres que na sua terra natal exerciam a função de curandeiros, foi essencial para o processo de cura em uma época de tão precária atenção médica, numa sociedade em formação.
3. No livro, as curandeiras fundam a “Casa da Mãe Neusa”, um local dedicado aos cuidados dos enfermos. De que forma essa instituição simboliza não apenas um espaço de cura, mas também de resistência e esperança para a comunidade negra no Brasil colonial?
Renato Moreira: Trago a discussão das casas de cura para o livro, exemplificada pela casa da mãe Neusa, para mostrar como esses espaços estavam presentes principalmente no interior do país. As famosas rezadeiras e curandeiras africanas sempre estiveram em comunidades pouco assistidas pela medicina tradicional.
4. No final da história, há um compilado com elementos adicionais, como os anexos sobre nomes históricos, linha do tempo, locais reais e plantas medicinais mencionadas. Na sua visão, como esses recursos enriquecem não somente a leitura, mas também a compreensão do contexto histórico e cultural abordado na obra?
Renato Moreira: Os anexos visam complementar as informações contidas no livro, trazendo para o leitor informações adicionais sobre tópicos específicos, como informações científicas e fatos históricos importantes, para facilitar a compreensão do contexto da época sem interromper o fluxo da leitura. Destaco como da maior importância a relação de algumas plantas medicinais e processos de cura citados na história. Também cito algumas das obras e referências que utilizei como fonte para elaborar a trama.
5. Você fez uma longa pesquisa para escrever esse romance histórico. Poderia nos contar um pouco mais sobre como foi esse processo de imersão?
Renato Moreira: Consultei dezenas de livros e centenas de textos em sites da internet, seja estritamente científico, seja de divulgação geral, para criar A curandeira Bantu. É claro que meus conhecimentos prévios na bagagem científica também foram de grande importância na condução do processo de pesquisa bibliográfica e de escrita. Enfim, foram muitas horas dedicadas à pesquisa e leitura de livros e textos avulsos para a construção da trama.