Dirigido por Rebecca Lenkiewicz, Hot Milk se utiliza do litoral mediterrâneo para construir uma narrativa sobre traumas e liberdades
O artista é comumente enxergado como um gênio incompreendido, afinal, ele apresenta tantas ideias dentro de si, tanta potência, tanto poder criativo, porém, muitas vezes uma ideia que é tão clara em sua cabeça, não fica tão óbvio na mente de um colega, de um parceiro, ou da própria audiência para quem esta arte é vendida, e apreciada, levando muitas vezes a grandes obras que apresentam o coração e a alma no lugar certo, não conseguirem acertar a marca e causar o impacto que era almejado, como é o caso de Hot Milk.
Em sua primeira direção, após roteirizar produções como Colette (2018, Wash Westmoreland) e Desobediência (2018, Sebastián Lelio), Rebecca Lenkiewicz adapta o romance homônimo de Deborah Levy, e opta por construir uma história sobre relações de dependência dentro de uma família, focando a produção na relação entre Sofia, uma jovem britânica que viaja para a costa da Espanha, buscando uma solução para uma doença misteriosa de sua mãe. O novo ambiente mediterrâneo, banhado pelo sol e por novas experiências sexuais, faz com que Sofia entre em conflito direto com sua figura materna, ocasionando falhas em uma relação que já estava frágil.
Confira abaixo o trailer de Hot Milk e continue lendo a crítica
Apesar de uma fotografia estonteante e boas atuações de Emma Mackey, Fiona Shaw e Vicky Krieps, Hot Milk não se decide sobre seu objetivo, se quer ser um novo clássico Lgbt como Call Me By Your Name (2017, Luca Guadagnino), que também explora o despertar sexual sobre o sol do mediterrâneo, ou se almeja construir uma jornada psicológica complexa sobre uma mãe, e como sua dor e passado, afetam a sua filha.

Emma Mackey em cena de Hot Milk- Copyright Metropolitan FilmExport
O roteiro de Hot Milk constrói um intrigante e confuso quebra-cabeça familiar, confundindo o espectador que não sabe mais em quem deve acreditar, na medida que cada vez mais pontos de vistas e intrigas se envolvem na história, o que podemos tirar disso tudo é a complicada relação que Rose teve com sua família, principalmente com sua irmã, o que ocasionou sua doença que é mais um impedimento mental do que físico, obrigando a filha a viver continuamente no estado de cuidadora.
Sofia é enxergada ao mesmo tempo como uma filha carinhosa, e como uma adolescente rebelde, sendo um papel muito confortável para Emma Mackey, após o término de Sex Education (2019, Laurie Nunn). Sua relação com Ingrid, é o gatilho para que toda a relação familiar entre em conflito, sendo até mesmo apresentada com muito simbolismo em cima de um cavalo, como se fosse a salvadora de todo o sofrimento de Sofia, quando na verdade, é a causadora de ainda mais gatilhos.
Hot Milk apresenta inúmeros subtextos, desde a apresentação de Ingrid, o estudo de Sofia pela antropologia e pelos ritos de jovens mulheres que dançam para derrotar uma bruxa, ou até mesmo o nome do filme que não é abordado em nenhum momento na produção. Todas estas imagens aparentam estar claras na cabeça de Rebecca Lenkiewicz, porém, em sua vontade de demonstrar a arte, ela priva o espectador de uma satisfação, e de uma resposta para a situação, e não de modo proposital, porém, como algo falho mesmo.
O ambiente estético transmite a raiva interna de Sofia de maneira sutil, porém, eficiente. Desde uma casa escura e fria, com sons extra-campo como latidos de cachorro, gritaria, entre outras questões, que é diretamente oposto à paz e o silêncio da praia, amplamente iluminada por uma luz natural angelical, contraponto dois conceitos fundamentais da produção: o caos e a paz, o paraíso e o inferno.
Hot Milk se inicia com uma citação de Louise Bourgeois: “Eu fui ao inferno e voltei. E posso dizer que foi maravilhoso”. Neste contexto, a produção retrata bem a difícil jornada que é a vida, e o amadurecimento, tendo que literalmente cortar laços com aquilo que te prende, no caso de Sofia, é Rose, porém, na prática, uma curta jornada de trauma geracional e de liberdade, que ocorre no período narrativo de uma hora e 30, é sentido pela audiência como algo muito mais longo.

Emma Mackey e Fiona Shaw em cena de Hot Milk- Copyright Metropolitan FilmExport
O fato de Hot Milk não apresentar um senso de catarse até o seu terceiro ato, sendo repetitivo em muitos aspectos, e com um número grande de simbolismos que não encontram razão para sua existência além da diretora mostrar quão inteligente realmente é, acaba cansando o espectador a ponto de nem mesmo a cinematografia e uma trilha sonora potente, permite que o seu final traga um senso de finalização, sendo incompleto, como se algo impedisse uma total satisfação de tudo que presenciamos, privando o espectador de uma catarse emocional, e o levando a sair da sala com nada mais além de um ponto de interrogação e belíssimas imagens.
Hot Milk tem estreia prevista para 3 de julho nos cinemas brasileiros, com distribuição da MUBI e O2 Play.
Siga-nos e confira outras dicas em @viventeandante e no nosso canal de whatsapp !