Na Mitologia Grega, Cassandra foi uma princesa troiana abençoada por Apolo com o dom da profecia e amaldiçoada, pelo mesmo deus, para que jamais tenha sua palavra acreditada. Ela previu a queda de Troia pela mão dos gregos, previu a morte de Agamenon pelas mãos de sua esposa Clitmnestra e sua própria morte nas mãos de Egisto, amante de Clitmnestra.
Na Psicologia, a analista Jungiana Laurie L. Shapira, cunhou o termo “Complexo de Cassandra” para mulheres que se sentem desacreditadas. Ao enxergarmos a sociedade machista atual, vemos que muitas mulheres passam por isso diariamente, falando o que sentem e passaram, e sendo ignoradas ou enxergadas como dramáticas/histéricas, porém, isto não é algo atual, existe desde sempre, e mulheres como Maria Schneider poderiam ter tido vidas bem diferentes, se somente tivéssemos a escutado e zelado um pouquinho mais.
Distribuído pela Imovision, Meu Nome É Maria conta a história de Maria Schneider, uma jovem atriz que recebeu o papel dos sonhos como protagonista em uma produção de Bernardo Bertolucci, chamada O Último Tango em Paris (1972, Bernardo Bertolucci).
Inserida em um mundo masculino, Maria Schneider dá o seu melhor para alcançar o seu sonho, porém, como enxergamos na produção de Jessica Palud, um trauma ocasionado por ego e vanglória masculina, a impediu de ser a estrela que deveria ser.
Meu Nome é Maria mostra inicialmente Maria Schneider como uma jovem inocente e sonhadora, inocente e com um brilho natural, a personagem entra em uma espiral de destruição, após o estupro filmado orquestrado por Brando e Bertolucci.

Anamaria Vartolomei em cena de Meu Nome é Maria- Distribuição Imovision
Apesar de tentar falar na época sobre o acontecido, Maria Schneider foi podada tanto pelo seu agente, quanto pela sua própria família, somente em 2007, ela abertamente expôs o fato, e somente em 2013, após a sua morte por um câncer de mama, que Bernardo Bertolucci admitiu que enganou a atriz e se sente culpado, porém, sem arrependimentos pelo acontecido.
Hoje, em 2025, Bertolucci já está morto, Marlon Brando já está morto e Maria Schneider já está morta, mas, mesmo assim, ainda mais após o movimento #Me Too, O Último Tango em Paris, sua narrativa e principalmente a escolha de Bertolucci em filmar cena tão odionda, sem o consentimento da atriz, deixa um gosto amargo na história do cinema, levando pessoas a se recusarem a assistir à produção por conta disso.
Na minha faculdade, o professor passou um trabalho sobre cinema europeu em comparação com o cinema da Nova Hollywood, o objeto europeu escolhido para esta discussão foi o filme de Bertolucci. Uma parte da sala, se recusou a assistir o filme, exigindo que o professor mudasse o objeto de estudo, após estas exigências, o filme foi mudado para Quando Duas Mulheres Pecam (1966, Ingmar Bergman).
Caso O Último Tango em Paris seja analisado friamente, somente por sua técnica e narrativa, o filme é muito bom. Algo que até mesmo Jessica Palud considera em seu filme, ao revisar certas cenas icônicas do filme de Bertolucci, com o intuito de mostrar o brilho de Maria, demonstrando o quanto ela estava esperançosa com tudo, para quebrar esta construção na medida que ela é inserida no mundo burocrático e radical da indústria cinematográfica, principalmente aquela comandada por homens.
É curioso compararmos o modo de retrato distinto entre a cena de estupro filmada por Bertolucci e a cena filmada por Palud, na primeira vemos obviamente uma male gaze na qual Marlon Brando se encontra em uma posição de dominação perante Maria Schneider, a câmera é filmada em um contra-plongeé, apoiada no chão, assim, Brando fica gigante perto da indefesa Maria.

Anamaria Vartolomei e Matt Dillon em cena de Meu Nome é Maria- Divulgação Imovision
A filmagem de Palud consegue ser ainda mais aterrorizante por conta de um detalhe específico que Bertolucci optou por ignorar: o close e a humanidade no retrato do ato. Bernardo Bertolucci desejava a reação dela como mulher e não como atriz, enquanto Palud apresentou um retrato que não tira a dignidade de sua retratada. Assistimos o abuso com tanta proximidade e de forma tão explícita, que mesmo sabendo desde o começo que aquela cena seria retratada em algum momento na produção, ela ainda nos consegue surpreender.
Nos primeiros momentos do filme, Palud conduz Anamaria Vartolomei do modo como se conduz uma valsa, demonstrando o quão grandiosa a jovem Maria Schneider realmente era. Do meio do filme em diante, presenciamos uma virada de ato nítida por conta da cena do abuso, o terceiro ato mostra a decadência de sua protagonista e o seu relacionamento com a universitária Noor, uma personagem que poderia ter sido bem melhor explorada do que somente “a namorada protetora e chata de Maria Schneider”.
Por meio de uma câmera próxima e um design de som angustiante em certas partes, acompanhamos uma Cassandra moderna, gritando ao mundo que precisa de ajuda, que perdeu seu brilho, que não está sendo enxergada pela própria indústria, na medida que a própria indústria deseja que ela reproduza a mesma personagem e comportamentos do filme de Bertolucci.
Ao final da produção, não podemos deixar de sentir um desconforto, afinal, o filme é um moinho que analisa friamente a vida de Maria e nos coloca, como espectadores, em uma posição de cúmplices deste fato. Tudo o que aconteceu em sua vida, principalmente seu retrato de Cassandra moderna, nunca recebeu seu devido valor, tendo somente sido enxergada pelo mundo, após a sua morte, por conta do advento do movimento #MeToo.
Meu Nome é Maria não é um filme fácil de se assistir, saímos dele até mais pesado do que quando entramos, na medida que não observamos somente Maria Schneider na tela, mas, observamos todas as mulheres que já passaram por algo semelhante, seja de abuso, ou o fato de falar e não ser acreditada, do mesmo modo que tantas Cassandras do passado e de agora.
Com distribuição da Imovision, Meu Nome é Maria chega aos cinemas nesta quinta-feira dia 27 de Março.
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