No domingo (24/11), Juliana Linhares e Rodrigo Garcia apresentaram seu show “No Raso da Catarina”, na Casa Sapucaia, em Santa Teresa, onde cantam somente compositores nordestinos. “Sustenta a Pisada”, de Cátia de França, paraibana, iniciou a apresentação com Juliana Linhares fazendo toda uma interpretação laureada por tantos anos de teatro.
Juliana, vocalista do Pietá e integrante do Iara Ira, surgiu aparentemente tranquila, e mostrou sua potência vocal logo de início, já arrancando palmas do público que enchia a Casa Sapucaia. Subia e descia de tom, brincava com outros sons. “Filho do Dono” trazia sua pegada de viajante das artes.
Enquanto Rodrigo Garcia mantém certa sisudez, fecha os olhos e fica em um mundo musical particular dedilhando cada nota com concentração afiada, Juliana faz tiradas cômicas espontâneas entretendo os espectadores entre uma canção e outra. Apesar do toque intimista, o espetáculo acaba por ser extremamente teatral, pelo contraste entre aquelas duas forças musicais – e a união. Rodrigo Garcia, sério, sendo um amálgama com o violão, sentado atrás, cria a perfeita pista para a decolagem do avião Linhares. “Ausência” de Ednardo, trouxe a forte presença da riqueza musical nordestina. Um trocadilho que cai bem, pois é exatamente um dos focos desse projeto.
Saiu pelo mundo
A emoção de “Deixei minha Terra”, de Marinês, fala mais sobre Juliana do que talvez ela mesma possa perceber. E, do seu âmago, emerge bem algo que ela me disse sobre suas experiências pessoais: “Comecei a cantar em Natal, despretensiosamente. Cantava Samba e Bossa Nova. Aí vim para o Rio, comecei a trabalhar com música e fui entender o que era realmente música, num lugar diferente. Pesquisar, ouvir. Quando a gente se distancia do lugar que a gente está, a gente se enxerga de uma forma diferente. Lá eu não era nordestina, todo mundo era nordestino, então não era diferente de ninguém. E aqui eu virei a nordestina, a pessoa que tem um sotaque diferente, que é de um lugar diferente. Isso me fez olhar para mim. Vou pesquisar mais o repertório, entender mais de onde vim, e nesse caminho cruzei o Rodrigo”.
Aliás, Rodrigo Garcia já tem um trabalho antigo, em sua banda de mais de 20 anos, o Nó Cego, com intensa pesquisa de música nordestina. A partir das suas vivências artísticas pessoais, escolheram essas composições, que formam todo um apanhado de crônicas sobre o nordeste. Um mergulho quase místico fora dos clichês. O ótimo filme brasileiro “Bacurau” foi lembrado, pois o duo tocou Oliveira de Panelas, “Estes Discos Voadores Me Preocupam Demais”. Juliana citou o quanto essa canção lhe faz pensar no filme, e, realmente, tem tudo a ver.
Calor invisível
Em uma performance caliente, cantando trechos em espanhol, Juliana utilizou de uma sensualidade irreverente, que, ao mesmo tempo, desconstruía e reafirmava sua feminilidade. “Eu sou o Estopim”, famosa através do Trio Forrozão, trouxe uma Linhares que espalhava um calor invisível, um tesão provocante. Parecia um coquetel molotov aguardando um tímido fósforo, que jazia receoso, de acender aquele vulcão que certamente emergiria, jorrando magma e criando uma nova arte. Sem falar que, Juliana começou o show com cachecol e suéter, os quais, aos poucos, foram sendo jogados ao léu, até que ela terminasse com um macacão decotado vermelho, a cor da paixão e da ação.
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“Sebastiana”, de Luís Gonzaga, foi seguida por Jackson do Pandeiro, com “Dr. Boticário”. Uma crônica de outros tempos, na interpretação cômica e crítica de Juliana que logo depois puxou “Rabo do Jumento” de Elino Julião. Então, veio o coco, ritmo que não poderia faltar. A cantora também trouxe “Vinte Palavras ao Redor do Sol”, da Cátia de França. Esse jornalista, sentiu como uma convocação ao trabalho, quando ouviu os versos cantados com força: “Chegou a hora mostre seu palavreado, Ou então assuma seu papel de mamulengo”. Enquanto escutava, já criava esse texto mentalmente. Foi como um estimulante raio de energia.
Casa Sapucaia com Devoção
Aliás, o local escolhido para a apresentação, a Casa Sapucaia, é um lugar aconchegante. Eram 18h quando cheguei, um pouco cansado após um longo dia de trabalho. Queria café, mas não tinha (afinal, era início da noite!). Contudo, dois argentinos, Fany e Kevin, que vivem nessa casa coletiva desde abril, prontamente me ofereceram o último gole do seu mate. Com o poder dessa erva, meu despertar foi instantâneo, trocamos algumas palavras simpáticas e, mais tarde, acabaria comprando um Baião de Dois. Vegano. De jaca plantada ali mesmo. Bom demais.
Rodrigo Garcia ainda me falou: “O contato com a música do Nordeste começou com meu pai que comprava discos de várias cantoras, era louco por cantoras, comprava Elba Ramalho, Amelinha. Com 10 anos ouvi Elba cantando Kukukaya, aquele nome me chamou atenção, Cátia de França. Fiquei com aquilo na cabeça. Mais tarde com vinte tantos anos já, junto com o grupo Nó Cego, Reinaldo, meu parceiro veio me dizer que tinha uma música da Cátia de França. Letra, poesia de um cara que mora em Lumiar. Ganhamos de presente o disco dela, o “20 Palavras”, mexeu com a minha cabeça, um disco incrível, absurdo. Nesse repertório do show, mostrei muita coisa para Ju, das pesquisas do Nó Cego, e outras”.
Com devoção, não poderia faltar Zé Ramalho, direto da “Vila do Sossego”. E um bis com Zeca Baleiro. Afinal, me restou o compromisso submisso de escrever sobre esse show. A música nordestina é essa energia vibrante de uma terra repleta de desafios e quando duas estrelas como Juliana Linhares e Rodrigo Garcia se unem para mostrar um pouco dessa vasta cultura, o resultado não pode ser diferente: supernova.
Veja o clipe de “Deixei minha Terra” com Juliana Linhares e Rodrigo Garcia:
Para mais fotos, visite @viventeandante 🙂