O racismo no audiovisual é claro: 84% dos roteiristas são homens brancos. Um Grupo de Estudos, regimentado na UERJ, analisou as produções audiovisuais realizadas no Brasil no intervalo dos anos de 2002 e 2014 e constatou, estatisticamente, o que já é dado como sabido pelo senso comum: os negros são minoria dentro no audiovisual. Numérica e simbolicamente, tendo visto que, no decorrer do processo histórico, a grande maioria das telenovelas e obras cinematográficas alimentou e se deixou alimentar por estereótipos e imagens distorcidas daqueles sempre vistos como ‘outro’ pela indústria. A repetição de características produz os arquétipos, por sua vez difundidos popularmente e repetidos à exaustão, cristalizando o imaginário popular. Pretendo apresentar uma reflexão sobre os dados da pesquisa, atravessado pelas leituras de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Marilena Chauí e Jessé de Souza, pensando alguns conceitos formadores de uma identidade nacional, como patrimonialismo, corporativismo, nepotismo.
A Negação do Brasil
Primeiramente, como referência, ainda, o filme documentário “A Negação do Brasil” de Joel Zito Araújo, onde é realizado um recorte preciso dos arquétipos produzidos na história do audiovisual no Brasil. Confluindo, enquanto conclusão, no momento atual, onde os movimentos sociais buscam solidificar o pouco espaço conquistado na cultura; conclama-se uma suposta democratização dos meios de produção do fazer cinema; e a emergência na paridade relacional, pautada pelas teorias de reconhecimento social, de um lado, e pela subjetividade neoliberal, de outro.
A princípio, qualquer leitura minimamente crítica a respeito do nosso passado enquanto nação, e antes, nosso passado enquanto colônia, há de constatar a violência brutal a que povos não-europeus foram submetidos. O genocídio indígena, hoje praticamente consumado, e o sequestro e escravização dos africanos são movimentos que não tiveram seu repouso no passado. Após a abolição, os escravos libertos mantiveram a mesma posição social, todavia, agora em busca de trabalho assalariado, necessário para sua subsistência.
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Segregação racial
O acúmulo de riquezas decorrente de séculos de exploração, o poder bélico, a normatização branco-eurocêntrica, somados ao corporativismo, traço recorrente nas leituras sobre Brasil, reforça a segregação racial. O branco, que se relaciona com brancos exclusivamente, produz e reproduz sua realidade objetiva, seu pedaço de mundo que enxerga como todo e onde o negro é o outro, aquele que está fora. Mantém relações profissionais com esse outro, geralmente em atividades manuais, serviço ou trabalhos vistos como pouco dignos.
Aliás, a distância entre classes vai se assentando no decorrer do processo histórico e, atualmente, dentro do seleto grupo de 1% mais ricos, apenas 17% são negros; no grupo dos 10% mais pobres, inverte-se a estatística. Os negros são 76% dos que tem renda média de R$130 por membro da família. A distribuição que se dá hoje reflete o passado e reafirma a inação na tentativa de democratizar a renda, mantendo famílias e grupos específicos no controle dos dispositivos de poder – terra, capital, mídia, estado, violência normatizada e
cultura, das capitanias aos condomínios.
Recorte de raça
O recorte de raça e classe foi reforçado pela cultura, enformada pela norma em vias de estabelecer o ‘lugar do negro’ e delimitar suas áreas de atuação. Símbolos enquanto geradores de universais. É notório, por exemplo,
que a composição das favelas é dada majoritariamente por negros e pardos, todavia, a criação e reprodução de símbolos que reforçam tal realidade, produz uma cristalização da imagem de toda uma etnia. Negro e favela passam a ser indissociáveis e vistos como unidade. Da mesma forma, símbolos outros se aglomeram no ideário de senso comum, estagnando uma imagem construída sobre mais da metade da população nacional. Um universal que, supostamente, haveria de resolver o entendimento sobre esse ‘outro’, eliminando todas as
complexidades e peculiaridades de tradições, cultura, história, epistemologias e vivências não-branco-normativa em prol de uma suposta harmonia.
Números do audiovisual no Brasil
Tendo como dado e pressuposto estabelecido que vivemos em uma sociedade racista, parece notório que a reprodução desse mesmo racismo institucionalmente constituído reverbere através da grande maioria dos campos profissionais. Todavia, alguns números relativos ao audiovisual brasileiro transbordam, beirando a exclusividade dos brancos em cargos de chefia e criação e hegemonia absoluta no que diz respeito ao protagonismo nas atuações.
A saber, o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) pesquisou obras audiovisuais de longa metragem realizadas no Brasil, no período que compreende os anos de 2002 a 2014, e verificou que, das 20 vinte maiores bilheterias de cada ano, 45% são protagonizadas por homens brancos; 35% por mulheres brancas; 15% por homens negros; e 5% por mulheres negras. Durante 3 dos 12 anos compreendidos pela pesquisa, nenhuma obra analisada foi protagonizada por uma mulher negra. Dados que se agravam ainda mais quando ponderamos a respeito das posições de poder. Entre roteiristas, 69% são homens brancos; 24% mulheres brancas; e 3% homens negros. Ocupando o cargo de diretor (a), 84% são homens brancos; 14% mulheres brancas; e 2% homens negros. Nenhuma mulher negra dirigiu ou fez parte da criação de nenhuma das 257 obras de longa metragem analisadas pelo estudo. São dados que compreendem a indústria do audiovisual brasileiro, ainda em construção, porém já marcada profundamente pela segregação racial.
Corporativismo e nepotismo
Entre as razões mais aparentes para tal quadro dado, aparecem os conceitos de apadrinhamento, corporativismo e nepotismo. A indústria do cinema e televisão, apesar de se dizerem indústrias, se dizem arte. Uma arte coletiva que, a partir da compartimentalização dos saberes e da aplicação de métodos em vista de um fim comum, produz uma obra audiovisual. Todavia, hão posições que produzem o fazer de outras. Aquele que escreve o roteiro, fala e manda falar. Aquele que dirige, vê e determina o olhar. E desde que se faz cinema ou televisão no Brasil, quem o faz é o homem branco. Todas as emissoras nacionais, exceto as estatais, são geridas por homens brancos e o cinema não foi por outro caminho.
O corporativismo é rotineiro em um círculo fundamentado em relacionamentos. Suspeito que a fluidez dicotômica entre trabalho x arte seja fator determinante para tamanha flexibilização. O nepotismo, por sua vez, aparece nos créditos de cada novo filme, quase sempre contendo sobrenomes já conhecidos e, de tempos em tempos, novos rostos, sempre apadrinhados por uma figura qualquer que legitima sua posição e permite que sua voz seja ouvida e valorada.
É essa base que, munida de suas visões de mundo, vivências, conceitos e preconceitos, fundou, modificou e vem construindo a imagem dos grupos não-brancos. Com pouquíssimos diretores e roteiristas negros, o discurso tem uma única direção, sempre enquanto objeto, calando as poucas vozes dissonantes. Ainda mais aguda é a fragilização da mulher negra que, impedida de criar, tem sua imagem dada exclusivamente por outros, submetida a olhares distorcidos e destrutivos no campo relacional.
Microescala
Estabelecido o silenciamento no campo criativo e do poder, resta identificar o lugar, a prisão conceitual gestada pelo cinema e televisão aos negros. Antes, parece relativamente claro que, a produção audiovisual, ao lado de outros dispositivos de mídia, constitui um produto que produz e reproduz em larga escala. Inegavelmente, todos nós, em microescala, produzimos e reproduzimos nosso ser no mundo, influenciando e sendo influenciados a todo instante, pessoa por pessoa. As obras audiovisuais, porém, visam o macro, o coletivo. Portanto é uma obra que parte de uma visão a respeito do mundo e que gera um produto que há de modificar, ou assim se espera, o mundo que a recebe. Ao reproduzir, produz e modifica em larga escala.
Entretanto, existe ainda uma desculpa supostamente artística na segregação. Com a justificação de que a obra é pautada no real, aqueles que a produzem se dizem refletindo o estado das coisas. Afirmam a impossibilidade de escalar negros para papéis ‘globais’ pois ‘poderia confundir expectadores’. O personagem, para ter sua ‘função’ enquanto negro, tem que ter passado difícil, viver em condições miseráveis e coisas do tipo. Dessa forma, é recorrente que, anúncios disponibilizando vagas para atores e atrizes, seja bem específico quando conveniente no chamamento. Quando o personagem é global, ou seja, é ‘qualquer um’, o anúncio diz ‘Precisa-se de atores’, porém subentende-se, ‘ator branco’, levando em conta que, pragmaticamente é o que se dá; e quando há um personagem especificamente negro, o anúncio especifica: ‘Precisa-se de atores negros’.
Alicerce no real
Porquanto, com base nesse suposto lastro no real, aos negros foram dadas imagens específicas, longe do ideal de belo normativo ou do protagonista de classe média ou alta. Normalmente bem-humorados, em posições de serviço e submissão consentida, os arquétipos foram se consolidando. Até a beleza, quando é permitido que seja impressa, é tida como exótica e hiper-erotizada. Porém, quando se faz conveniente, o realismo se torna menos relevante e o fantástico toma seu lugar na manutenção do status quo. A telenovela, Escrava Isaura, onde a protagonista é uma escrava branca que se torna senhora e convence seu marido a libertar os escravos negros. A retratação desse momento histórico, inclusive, é sempre pacífica. Os brancos, conscientes da barbaridade escravista, a partir de atos de boa-fé e empatia libertam os escravos, agora agradecidos pela boa ação, partem em busca de sua liberdade. O alicerce no real é esticado ao bem prazer de quem realiza.
Exemplos
Os recortes mais frequentes estão presentes no inconsciente coletivo, bombardeado por anos de imagens construídas e impostas ao todo como verdade. No filme “A Negação do Brasil” temos uma categorização de alguns dos arquétipos mais recorrentes, os quais destaco três:
– mammy / mãe-preta –
Mulher, ótima cozinheira e afetuosa. Um arquétipo que surge do período escravocrata e é performado, na contemporaneidade, pelas domésticas das residências das classes média e alta. Cuida das crianças como uma mãe, dando um norte moral e preenchendo lacunas deixadas pelos pais brancos na formação dos filhos. Sendo ‘quase da família’, ela geralmente mora junto com seus patrões, todavia ocupando os fundos dessa relação. Suas refeições são na cozinha, junto dos outros empregados. Normalmente retratada nas novelas repetidamente, esse arquétipo foi posto em xeque recentemente, no filme de Anna Mulyaert, “Que horas ela volta”. Regina Casé interpreta uma ‘mãepreta’ contemporânea, empregada doméstica que mora na casa de uma família pequeno-burguesa. Com a chegada de sua filha biológica, a emergência da consciência de classe desmonta o arquétipo que abre mão do emprego e vai morar com sua filha em um bairro periférico.
– segurança –
Homem, forte e fiel. Um caseiro ou capataz, aquele que provêm segurança ao núcleo a ele associado, em geral composto por protagonistas brancos. Segue um código ético moral rígido, e, quando necessário, está disposto a aplicar sua força em atos de violência, seja como medida protetiva, corretiva ou educacional. Na contemporaneidade, com a popularização dos movimentos sociais, esse arquétipo, antes comumente associado a violência contra mulher em obras televisivas, teve sua psique modificada, em vias de maior aceitação. A rigidez moral permanece, porém, associada a uma inocência, uma ingenuidade. Rodésio, interpretado por Tony Tornado em Roque Santeiro é um bom exemplo que demarca ainda o preconceito em relacionamentos inter-raciais. A produção chegou a filmar um desfecho onde Rodésio e Porcina (Regina Duarte) terminavam juntos, como um par romântico, característico das telenovelas, todavia esse final não foi ao ar por receio quanto a recepção do público.
– empregada sexy –
Jovem, de corpo ‘naturalmente’ tonificado e sempre desejada por seus patrões. A indústria da pornografia já se encarregou de massificar profundamente uma conexão entre o sexo e a atividade de doméstica, todavia, realizando o recorte racial, as mulheres negras são ainda mais objetificadas e em diferentes níveis. Na telenovela Laços de Família, Ritinha, personagem interpretado por Juliana Paes, recebe investidas de seu patrão, no decorrer dos capítulos. Apesar de inúmeras negativas, num dado momento ela é seduzida por seu patrão, gerando uma gravidez. Ritinha, sempre correta, conversa com sua patroa, Alma (Marieta Severo), lhe conta toda a verdade e, depois de idas e vindas, conciliam-se. Por fim, Ritinha morre no parto de gêmeos que serão criados pelo casal de patrões.
Democratização
A demanda de reconhecimento social, no decorrer desse processo construtor de imagens, não se manteve alheia. O movimento negro sempre se posicionou em repúdio as inúmeras cenas desrespeitosas, ofensivas ou racistas, todavia isso normalmente visto, pelos criadores do audiovisual, como uma proibição, uma censura à liberdade de expressão. Inclusive, a partir dos anos 2000 no Brasil, com a maior difusão dos movimentos sociais em camadas da classe média, os arquétipos vêm recebendo duras críticas que agora tem vazão através das redes sociais, gerando modificações concretas nas produções, cada vez mais atentas ao novo ambiente público virtual.
Junto com a democracia das redes sociais e do discurso, alega-se uma suposta democratização dos meios de produção para o fazer cinema. Todos os hoje em dia tem celulares com câmera, e daí concluem os que reforçam tal tese, portanto todos podem fazer filmes. É bem verdade que o acesso a um aparelho que capta imagens do real com relativa qualidade se tornou muito mais acessível, todavia há entraves ainda mais profundos. O cinema e a televisão seguem normas, padrões estéticos e formais que exigem alguma curva de
aprendizado para que o produto resultante de tal atividade seja um filme viável comercialmente. E é, de fato, aí que residem barreiras que impedem afirmar que, de fato, há um espaço democratizado. Apesar de todos terem voz, ser ouvido é cada vez mais difícil. A distribuição e investimento em propaganda ganham papel
determinante, definindo o que há de ser visto, por quanto tempo e com que frequência. O capital dita a indústria mantendo o estado de coisas inerte do ponto de vista inclusivo, repetindo os epistemicídios do passado.
Concluindo
Em suma, através do olhar sobre o passado colonial, escravocrata e branconormativo, podemos ter como dado que vivemos em um país rasgado pelo ódio racial. O orgulho de ter como imagem a ilusão de uma democracia racial, impõe a norma. O branco, sempre se auto referindo como não-racista, entende que há harmonia no estado de coisas e o negro apenas ocupa um lugar tal por ocorrência do acaso ou falta de mérito.
Aos filhos da classe média, o capital cultural e social. Estudam línguas, fazem esportes, aprendem sobre programação, música, arte e se relacionam com diferentes pessoas de diferentes áreas. Seu capital cultural é alimentado pelos seus pais, antes mesmo que tenham interesse em tal empresa e, tal capital, é valorado no, cada vez mais restrito, mercado dos recursos humanos.
Um mercado tão pequeno e restrito como o audiovisual no Brasil se dá, quase que exclusivamente, com base em relações de apadrinhamento, corporativismo, nepotismo e patrimonialismo, levando em conta que o absoluto maior investidor do cinema e televisão nacionais, é o Estado.
Uma conciliação nesse momento parece impensável, ponderando que o ideal neoliberal, em plena expansão, identifica exatamente esse capital cultural e social como parte do fazer a si mesmo meritocrático e, tal benesse não deve ser democratizada pois é bem comum de um seleto grupo. Grupo esse, que antagoniza e se contrapõe as demandas dos movimentos sociais que, na emergência por paridade relacional, já identificaram a necessidade de ocupar com outras vivências, epistemologias e metodologias, o campo do audiovisual em vias da destruição dessa imagem construída sobre os negros, desde os primórdios do Brasil.
Referências bibliográficas:
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CHAUÍ, Marilena. Brasil – Mito Fundador e Sociedade Autoritária. 04.ed. São Paulo. Fund. Perseu Abramo. 2001.
SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou Como o País se Deixa Manipular Pela Elite. 01.ed. São Paulo. LeYa. 2015.
Matérias:
PESQUISA ESCANCARA AUSÊNCIA DE ARTISTA NEGROS NO CINEMA BRASILEIRO. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/pesquisa-escancara-ausencia-de-artistas-negros-nocinema-brasileiro-18815033
MAPA RACIAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Desigualdades Espaciais.
Disponível em: https://desigualdadesespaciais.wordpress.com/2015/11/04/mapa-racial-da-cidade-do-rio-dejaneiro/
ANALFABETISMO ENTRE PESSOAS PRETAS E PARDAS É MAIS QUE O DOBRO DO QUE ENTRE AS BRANCAS, DIZ IBGE. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/analfabetismo-entre-pessoas-pretas-e-pardas-e-maisque-o-dobro-do-que-entre-as-brancas-diz-ibge.ghtml
ARQUÉTIPOS E CARICATURAS DO NEGRO NO CINEMA BRASILEIRO.
Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/arquetipos-e-caricaturas-do-negro-no-cinema-brasileiro/
Artigo:
Sobre os rolos de filme analógicos e como a revelação privilegiava pessoas de pele branca.
ROTH, Lorna. Looking at Shirley, the Ultimate Norm: Colour Balance, Image Technologies, and Cognitive Equity. Disponível em: http://www.cjc-online.ca/index.php/journal/article/view/2196/2055
Filme:
ARAÚJO, Joel Zito. A NEGAÇÃO DO BRASIL. 2000. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=PrrR2jgSf9M