O comportamento do homem moderno está cada vez mais translúcido para mim. Entender a pouca sofisticação do homem branco, é fácil quando desvendamos o passado.
Dei a sorte durante a pandemia de conhecer Juão Nym. Foi em uma oficina que lembro vagamente, afinal, foram muitos cursos online durante o “aprisionamento” que tivemos que vivenciar. Eu jamais imaginaria que o livro dele chegaria em minhas mãos com o pedido de uma análise escrita para o site Vivente Andante. E que sorte tive, pois conhecer Tybyra é apropriar-me de entendimento dos dias atuais. Ter acesso ao idioma indígena é uma glória para mim, porque entendo isso como aproximação do que realmente sou e de onde vim. Sou brasileira, pertenço ao povo originário com muita honra, e estou ao lado desse meu povo, dessa cultura que não deixam chegar.
Como é bom entender que o nordeste é ricamente indígena, que carrega, se banha nessa fonte. Angico, pia (olhar), atazanar, quarar, entre outras palavras do povo originário desse país. Como uma mulher do teatro lembrei-me da Casa de Zoe, cia de teatro do Rio Grande do Norte, em conversa com Titina, atriz reconhecida, tive a oportunidade de saber que no Rio Grande do Norte houve uma matança do povo indígena de lá, inclusive o espetáculo “Meu Seridó” passou por uma profunda pesquisa para entendimento da dramaturgia. Um verdadeiro extermínio. Estudando um pouco para escrever sobre o espetáculo de Zé Ramalho, soube que a Paraíba foi um dos lugares mais difíceis de invadir devido à resistência indígena de lá.
Não seria necessário defender o óbvio, se não fosse a ambição do homem em nosso território.
Uma dramaturgia sofisticada é o que posso dizer. Confesso que enquanto lia, praticamente via as cenas em minha cabeça. Como crítica teatral, posso conceituar o texto, dizendo que nos prende, tem conflito, início e história, tudo atualíssimo.
Não acreditava no que lia no início da dramaturgia, por ser ousada, imaginei o texto na língua dos artistas, com a sonoplastia das folhas da mata, sem refletores, no breu, enquanto o diálogo se fazia. Uma cena contundente, afinal o teatro tem elementos que pressupõe a pequeno, deixando o imagético de cada espectador em primeiro plano. Fantástico!
Não entender o homem e sua orientação é do passado e que infelizmente se desenha no presente, o patriarcado, o machismo, tudo embutido em centenas de anos na nossa sociedade. Julgar e sentenciar o que não é preciso chega ser no mínimo vergonhoso.
A história se passa em 1614, quando prendem TybYra, primeiro homem preso por sodomia em terras brasileiras, no Maranhão. Aprisionado por franceses (esses reconhecidos durante a prisão pelo réu, risos) e condenado por um padre, que deveria defender a vida.
Fala Tybyra no texto: “Se padres gostam de Vyda, como deyxam esse crystão morrer?” O texto também é escrito no idioma indígena. “pa’i wery, owedja ko nhanderu upe oiko wa’e omanó?”
Viva o padre Francisco que tem agido de maneira mais amorosa e redentora em Roma, sede do catolicismo, esse que foi esmagador no passado.
Lembrei-me muito de Oscar Wilde, enquanto lia. O autor também foi preso e acusado, sentenciado a prisão por longos anos, por sodomia. Com uma sentença agressiva e vergonhoso a um homem de muito valor.
Juão Nym trouxe um TybYra profético, que parecia entender muito do futuro.
” mas eu seyque desde que eles osaru pysar os pés pôdy nessa terra, o tempo parou. Myl e quynhentos não acabou. Myl e quynhentos que chama, né? Dyabo de número grande eles ynventaru pra contar… Vay até onde essa muléstia? Querem regystrar o Ynfynyto, é? Tem coysa que não dá pra perndê, pra gravá… Povo da memórya fraca, a gente não esquece… Problemas deles, agora… Quem mandou eles ensynarem a gente a ler e a contar as lógycas deles?”
Este parágrafo casa-se perfeitamente com o enredo da escola de samba do Salgueiro este ano.
“Eu aprendi português a lingua do opressor…”
“Falar de amor enquanto a mata chora…”
O homem branco é opressor por natureza, não só com indígenas ou homossexuais, no Brasil nós mulheres somos pressionadas e muitas vezes usurpadas sem dó.
O homem não entendeu ainda que todos devemos ser livres como ele é livre, isso está na nossa constituição, todos podemos ser e crescer, nos tornando independentes, do seu querer e conceitos. A luta é contante, diária, mas a resistência também é, é uma questão de tempo para o Marco Temporal e a liberdade das mulheres e homossexuais do Brasil, isso é um fato, pois não existe barreira suficiente para a força da água ou da terra, quando ela se movimenta sem freios.
Fecho esse texto lembrando de uma mulher livre, sem preconceitos e eternizada, penso que ela entendia bem mais das maravilhas indígenas, essas que ela mesmo mencionou em suas composições, sobre o povo originário, e que com certeza Tybyra deve estar bailando com ela, como se bailava na tribo, lá no esconderijo onde eles estão agora…
Juão Nyn é multiartista, atua na performance, no teatro, no cinema e na música. Potyguar(a), 31 anos, militante do movimento Indígena do RN pela APIRN, integrante do Coletivo Estopô Balaio de Criação, Memória e Narrativa, da Cia. de Arte Teatro Interrompido e vocalista/compositor da banda Androide Sem Par.
Sinopse de Tybyra
1614, São Luís do Maranhão, Brasil.
Preso à boca de um Canhão, prestes a ser executado por sodomia por soldados franceses, Tybyra, Indígena Tupinambá, relembra a própria vida e propaga suas últimas palavras como se, depois de relâmpagos, o som dos trovões saísse de sua boca. Dramaturgia de estreia do artysta Potyguar(a) Juão Nyn, uma ficção sobre o primeiro caso de TBLGfobia com um nativo, documentado no país.
Por fim, adquira na Amazon
Por fim, leia mais:
Zack Snyder leva exclusividade de Rebel Moon à CCXP23
‘Aquaman 2’ constrói mundos magníficos
Enfim, “As Bestas”: vencedor do César de Melhor Filme Estrangeiro chega aos cinemas brasileiros em janeiro