- Por Sávio Costa
Quando Justine Triet se tornou a 3ª mulher a vencer a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, no primeiro semestre de 2023, ficou claro que sua presença no movimento cinematográfico ultrapassaria as fronteiras da França. Ela não apenas trouxe uma atmosfera roteirizada e cinematografia únicas, mas adaptou sua visão de cinema para uma única obra: “Anatomia de Uma Queda” (“Anatomie D’une Chute” em francês).
Raros são os filmes modernos que apresentam uma narrativa jurídica, desmembrando ou construindo uma camada dramática envolta de termos sólidos e não tão técnicos dos tribunais. “Anatomia de Uma Queda” é precisamente um filme que consolida as potências do roteiro em momentos tensos, abdicando de diálogos ou monólogos simplistas e clichês.
O filme não busca se afastar da tentativa de chamar a atenção dos falantes de língua inglesa. É exatamente essa troca de informações que faz com que a personagem nada simplória, mas minuciosa e cautelosa, de Sandra Huller, atraia todos os olhos envolvidos na trama. Ela não apenas é a personagem principal, mas também consegue ser o elo de linhas de pensamento ou de julgamento que solidificam a história.
ASSISTA AO TRAILER:
A personagem de Sandra é batizada com seu próprio nome, uma escritora romancista que vive com seu filho cego, após um acidente aos 4 anos de idade, e seu marido “problemático”, também escritor, Samuel (interpretado por Samuel Theis), nos Alpes pálidos e isolados da França. Esta é uma receita clara e direta para iniciantes no mundo cinematográfico: danos e dificuldades em volta do protagonista.
Tudo se torna nebuloso quando o filho parcialmente cego de Sandra encontra o corpo morto do seu pai caído na neve, com sangue saindo de sua cabeça e traçando uma mancha que se tornaria uma “sina” para a obra. Sandra chega no local justamente após ouvir o grito de seu filho do lado de fora. O resto… bem, o resto é história!
Muitas vezes, pudemos presenciar experiências no tribunal como Kramer Vs. Kramer (1979), Questão de Honra (1992) e 12 Homens e uma Sentença (1957), que é mais um recorte dos bastidores de um júri do que um tribunal propriamente dito. Nesse caso, Anatomia de uma Queda procura trabalhar com fatos, testemunhos, teorias, observações e, mais que isso, uma profunda experiência de julgamento.
Triet nos proporciona o julgamento, mas não na corte; o julgamento se torna ponto chave da trama justamente por ser um poder que pertence somente ao telespectador. Desse modo, o filme concede tudo aquilo que precisamos para experimentarmos uma vivência onde os lados apresentados na história não são beneficiados pela dúvida da própria trama. Pelo contrário, a diretora faz com que a imparcialidade seja seu tempero principal.
Enquanto há o desenvolvimento de toda a trama, somos tomados por uma fotografia pálida, fria e ao mesmo tempo bela, representando uma tela em branco, onde todos os personagens e seus diálogos afiados dançam como pincéis, utilizando seus medos e experiências como tinta. Tudo ao som da trilha sonora suave e instigante.
Em tempos de fake news e da cultura do cancelamento, Justine Triet procura fazer do julgamento um alicerce, por mais saudável que seja, instigando a busca pelos fatos e proporcionando uma tentativa, nem que seja única, de abordar a atual falha mais popular da humanidade: a preguiça de pensar antes de “sentenciar”.
Por fim, leia mais:
‘Por Elas – Um Musical sobre a força do canto feminino’ chega ao Teatro Clara Nunes
‘Libertas – um jogo cênico’, peça de teatro aborda busca pela liberdade e igualdade
‘Antes do Ano que Vem’ diverte enquanto reflete sobre saúde mental, entenda
Concordo com tudo o que disse. Porém, ressalto as incríveis atuações, principalmente de Sandra e de Milo Machado, que interpreta Daniel. O menino tem uma maturidade cênica que muito ator adulto não tem. Também me chamou atenção a forma como Justine desenrola aos poucos os personagens, desenvolvendo-os lentamente, dando tempo para o espectador conhecer cada um as poucos e ir fazendo seu julgamento a medida que o conhece. Isso possibilita ainda mais o que você disse: a dúvida. Porque, conforme os personagens vão sendo pincelados aos poucos, o espectador vai duvidando cada vez mais de quem está certo e quem está errado. Esse filme é um trabalho de mestra! Viva Justine! Gostaria que ela ganhasse o Oscar de melhor direção, mas sabemos que isso não vai acontecer porque o (eca) Nolan vai ganhar por causa de (eca) Oppenheimer.