Dirigido por Laura Casabé, O Lago da Perdição constrói uma alegoria do colapso econômico argentino de 2001 a partir da dor íntima de uma adolescente rejeitada
O horror latino-americano tem se mostrado um dos campos mais férteis do audiovisual contemporâneo. Não por acaso: desde a colonização, países como Argentina, Paraguai, Uruguai e México convivem com a violência, a exploração e a desigualdade como fantasmas permanentes, e mesmo passados séculos, a experiência colonial persiste de modo indireto, produzindo crises cíclicas que afetam diretamente a vida de seus cidadãos.
A Argentina talvez seja o maior exemplo dessa condição, afinal, a crise de 2001 deixou marcas profundas, e embora o país siga em processo de recuperação, a memória coletiva do colapso permanece como sombra diária. Esse trauma já foi explorado com maestria em Relatos Selvagens (2014, Damián Szifron), que demonstrava até onde o ser humano pode ir em momentos de desespero, e agora de forma alegórica em O Lago da Perdição.
Para Laura Casabé, todo o caos argentino emana da raiva e da frustração de uma jovem adolescente, Natália, que ao descobrir que o seu grande amor não será correspondido, se fecha ao mundo, e neste processo, manifesta poderes misteriosos que afetam todos os seus arredores, tornando Natália uma espécie de “Matilda” adolescente, frustrada, amargurada e cercada por uma atmosfera de violência, sexualidade e ressentimento que permeia todo o país.

Dolores Oliverio, Isabel Bracamonte e Candela Flores em cena de “O Lago da Perdição”- Divulgação Festival do Rio
Desde a sua primeira cena, que mostra a protagonista em um ato de masturbação, O Lago da Perdição deixa claro o tom da produção, que é seguida pela morte radical de um morador de rua, apresentando semelhanças estruturais com o movimento francês conhecido como Nova Extremidade Francesa, que nos anos 2000 ganhou notoriedade por exibir sexo e violência de forma explícita, como modo de explorar a vulnerabilidade e os limites da condição humana.
Apesar de ser divulgado como horror, O Lago da Perdição demora a abraçar o gênero por completo. O sobrenatural está presente, o vodu praticado pela avó de Natália, a presença enigmática de um garoto recém-chegado, os olhares carregados dos vizinhos, mas sempre de maneira insinuada, nunca plenamente explorada, sendo esta a maior falha da produção.
Essa hesitação gera certo desequilíbrio. O realismo das relações humanas ocupa grande parte da narrativa, quando o fantástico, com toda sua potência alegórica, perdendo a chance de explorar com mais radicalidade sua própria proposta e a própria relação entre uma jovem ressentida e a crise de um país. Filmes recentes, como Magras! (2025, Nathan Hertz), mostram como o mergulho sem pudores na grotesca visceralidade pode render resultados mais potentes, algo que poderia ter sido mais explorado na produção argentina.

Dolores Oliverio, Isabel Bracamonte, Agustín Sosa, Fernanda Echevarría e Candela Flores em cena de “O Lago da Perdição”- Divulgação Festival do Rio
Apesar das limitações, O Lago da Perdição cria uma atmosfera visual e sonora notável. O design de som e a fotografia reforçam um sentimento de clausura e sufocamento, mesmo nas cenas em ambientes abertos, como o lago. A natureza surge fria e opressiva, como se não houvesse saída para a dor de Natália. O clima, da chuva ao sol pálido, reflete sem nenhuma sutilidade o estado emocional da protagonista.
Os closes nos olhos de Natália são especialmente perturbadores. Através deles, o espectador percebe a intensidade de sua dor e a sugestão de que, em última instância, ela poderia fazer qualquer coisa. A tensão entre a vulnerabilidade adolescente e a possibilidade ilimitada de destruição torna o filme inquietante, ainda que nunca totalmente aterrador por conta de sempre ficar na paralela de seu real potencial.
O Lago da Perdição é menos um filme de horror tradicional e mais um experimento alegórico e um estudo de personagem. Laura Casabé propõe uma pergunta instigante: e se a raiva e a desesperança de uma adolescente pudessem concentrar em si o trauma coletivo de um país inteiro? Oferecendo assim uma leitura original e perturbadora da crise argentina, em que seu valor se encontra na forma como traduz o íntimo em coletivo, como conecta o coração partido de uma jovem ao colapso de uma nação e como poderia ter ousado bem mais em seu universo fantástico.
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