Semente: Mulheres Pretas no Poder começa com barulho de chuva, seguido por imagens de luto, em preto e branco. Em seguida, é noticiado, em off, o assassinato de Marielle Franco, juntamente com registros da manifestação ocorrida em março de 2018, em frente à Alerj, em um ato de repúdio à morte da vereadora, que é embalado pelos discursos de Rose Cipriano e Talíria Petrone e pelo povo gritando “Justiça!”. Assim começa o documentário Semente: Mulheres Pretas no Poder, dirigido por Éthel Oliveira e Júlia Mariano. Aliás, é composto por uma equipe majoritariamente feminina e traça uma linha cronológica iniciada no primeiro turno das eleições de 2018, sob o viés dos bastidores das candidaturas de seis mulheres negras do Rio de Janeiro a deputadas federal ou estadual: Talíria Petrone, Renata Souza, Tainá de Paula, Rose Cipriano, Jaqueline de Jesus e Mônica Francisco.
Corrida eleitoral
O lamentável feminicídio político que Marielle Franco sofreu em 2018 reverberou em forma de levante político para novas caras femininas e negras na política estadual e federal. Assim, o longa acompanha a trajetória eleitoral das seis candidatas supracitadas, oriundas de periferias cariocas, e perpassa panfletagem nas ruas, rodas de conversa, comícios, depoimentos pessoais e manifestações emblemáticas do Ele Não. Há registros de perseguição policial na campanha de Talíria Petrone, denunciando a postura antidemocrática e abusiva da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Mônica Francisco, ex-assessora de Marielle, comenta sobre a violência política e o medo, enquanto trançam seus cabelos para a sua posse: “A gente vem do movimento social, da rua, da militância. A gente estar em evidência não nos coloca em risco. O risco, ele já existe. Ele pode intensificar porque ele aguça ainda mais os ódios. Ódios de classe, que é muito mais pela diferença (…), a gente ta falando aqui de cor, de raça.”
Isso faz emergir o momento democrático dramático e frágil pelo qual vivenciamos desde 2018, especialmente para as parlamentares negras. Mônica finaliza sua fala com “o problema é o sistema”.
O legado de Marielle
A saber, a população brasileira é 28% composta por mulheres pretas e, dessa porcentagem, apenas 2% ocupam o Congresso. Ainda que tenham tentado calar a voz de uma mulher preta, o legado de Marielle, simbolizado no longa por Renata, Talíria, Rose, Mônica, Jaqueline e Tainá, foi o caminho encontrado para que haja corpos negros femininos no poder. Em 2018, houve um efeito de potencialização da resistência feminina preta, fazendo com que houvesse um aumento de 93% no número de candidaturas autodeclaradas pretas. Ou seja, um feito que pode significar o início de diversidade para a cara da política brasileira.
Somado a isso, o longa alerta para a escolha de voto da população brasileira centrar-se no candidato homem, hétero, branco e com família como modelo engessado de confiabilidade, fruto do sistema patriarcal e racista solidificado em nossa sociedade. Assim, essas mulheres vêm com o propósito de expandir a presença de outros corpos no Congresso. No intuito de dar visibilidade para povo preto e periférico e adotar políticas públicas que assistam a essa parcela da população.
Renata Souza tem uma fala emocionada após a notícia de sua elegibilidade na qual sintetiza a importância de diversidade na política:
“A minha ida e a ida da Mônica e de todas as outras mulheres negras bem-votadas, isso demonstra o quanto que nós, mulheres negras, da favela, da periferia, a gente está na vanguarda de um processo que é muito, muito interessante. Que mostra pra gente o quanto que a política tem que ser mais a cara do povo, ter a cara do povo.”
Vitória nas eleições como sinônimo de mudança
Acompanhar a campanha eleitoral de Rose, Jaqueline, Tainá, Talíria, Renata e Mônica, e a vitória nas urnas de Renata, Talíria e Mônica traz ao(à) espectador(a), que compactua com a ideologia de mudança política, um novo olhar pro futuro das eleições brasileiras e a perspectiva de rompimento com o apagamento cultural do povo negro.
Semente: Mulheres Pretas no Poder se encerra com a posse de Talíria Petrone, Renata Souza e Mônica Francisco de maneira emocionante. Renata enfatiza o simbolismo de uma nova perspectiva de ocupação negra na Alerj quando diz: “A Alerj (…) é uma casa do tempo do império, ali na construção da República. Adentrar esse lugar, não como aconteceu com nossos ancestrais, para serem presos, julgados e exterminados, mas como uma pessoa que vai impedir que isso continue acontecendo e quer impedir. Então é muito simbólico, de todas as formas.”
Sob um olhar panorâmico, Talíria, com sua vestimenta colorida e marcante, junto à bancada do PSOL, forma uma pequena parcela da oposição num Congresso majoritariamente composto por homens brancos engravatados. A ocupação do gabinete de Talíria é emocionante, com Erundina entoando um discurso potente em que brada: “Nós vamos lutar contra a opressão, a opressão machista, a opressão homofóbica e salvar o Brasil! Viva a democracia!”
Por fim, o longa é um misto de esperança e reparação histórica que ecoa as lutas de Marielle através das personagens da obra e provoca o(a) espectador(a) a repensar sobre um modelo político mais voltado à pluralidade de corpos que abarquem, de maneira mais igualitária, as diversas camadas sociais e raciais do Brasil. Segundo palavras da co-diretora Júlia Mariano, “Sementes é uma microrrevolução.”
Semente: Mulheres Pretas no Poder está disponível gratuitamente on-line no site www.embaubafilmes.com.br até o dia 30 de setembro de 2020.