Era Uma Vez Um Sonho. A princípio, a escolha do título brasileiro não comporta o tamanho da profundidade e tristeza deste filme. Seu nome original “Hillbilly Elegy” é perfeito; a tradução literal seria algo como Elegia Caipira. Elegia significa um tipo de poesia triste e melancólica feita para funerais e momentos de lamentação. Caipira é aquele que vive no campo e cujos hábitos são pouco tolhidos diante de um local que não se faz necessário, que não se dedica a instruir sobre detalhes, onde o urgente é o dia e é o fazer, o trabalho; típico de quem é responsável por manufaturar braçalmente seu sustento e muitas vezes de forma mais isolada dos convívios sociais; aquele que trabalha mais do que festeja.
Não é tarefa fácil transmitir esta noção de realidade e o sentimento nela imbuído, ao que Amy Adams, Glenn Close e Gabriel Basso fazem magistralmente, a ponto de acionar meus próprios gatilhos emocionais sobre o assunto. Pois é, esta que vos fala é uma tremenda caipira.
Vamos ao que vi no filme sobre a família Vance e que rasgou um pedaço pouco visitado do meu peito:
Segredos de família que carregamos conosco. Não daqueles que viram novelas, mas aqueles que são velados por todos. Ambiente conservador, onde as coisas mudam devagar e tudo pode acabar desviando de um padrão que não existe além do imaginário local, e que por motivos contratualistas primórdios passa a ser seguido sem saber de onde ou porquê.
Tempo. Como o mesmo tempo parece ter leituras diferentes em cada lugar. Só quem já pôde ir à uma cidade de interior consegue entender a diferença, que é sentida fortemente por quem chega ou por quem se vai. E ir, por si só, já é uma tarefa árdua.
Quantos J.D. Vance existem por aí e quantas vidas são direcionadas a partir de onde você veio? Como é tentar viver sem abandonar valores que podem justamente te impedir de ter acesso à certos lugares e conquistas que você, como qualquer outro, deve poder almejar e ter condições de alcançar?
Luto
Elegia é sobre luto. E ninguém vive este momento tão bem quanto o caipira. Todos sentem dor, onde quer que estejam, mas o compartilhar coletivo de uma partida é certamente mais presente em locais onde o tempo te permite sentir, onde a pressa não sobrepõe o respeito ao momento de despedida. Não importa o quanto os membros de uma família estejam quebrados individualmente ou mesmo em suas relações, eles estarão unidos mais do que nunca em momentos como este. Pode não ser algo que almejamos, mas é real e presente.
Lidar com consequências, viver apagando incêndios e administrar o que resta de um estilo de vida muitas vezes sem perspectiva de mudança, melhora ou realizações, um mundo de oportunidades limitadas, distantes; principalmente para queles que acreditam que não há mais tempo. Neste filme, vemos intenções mudarem realidades.
Amadurecimento
Amadurecer para além da noção de certo e errado, de culpa e inocência numa visão dicotômica adolescente e limitada da vida. Coisa esta complexa e cheia de relações cujo controle é inexistente. Inconsequências, e o que aprendemos com elas. Quem é responsável pelos irresponsáveis? São estes mais vítimas ou culpados pelo que se tornam? Há uma linha tênue.
Outro destaque do filme são as regras e necessidades burocráticas feitas sem a ótica do outro, do diferente de mim, das múltiplas realidades do mundo, e que por isso mesmo favorecem determinadas camadas e setores sociais. Vemos que na tentativa de acompanhar outra realidade, podemos nos perder de nós mesmos, e sem referências, seremos menos que nada. O que importa não é o que nos tornou o que somos hoje, é o que fazemos com nossa bagagem de feridas e vivências tão únicas.
Enfim, esta história que expõe fragilidades e vulnerabilidades é tão atual quanto necessária. É de fato um belo ano para as adaptações literárias da Netflix.