A arte é para ser singela, simplista, entretenimento? Ou, pelo contrário, deve provocar a reflexão, cutucar, reabrir cicatrizes, criar novas, ser veneno e antídoto? Na última sexta-feira (31), assisti como convidado a peça Isto é um Negro. Uma grande discussão sobre negritude e a sociedade em que vivemos a partir da visão dos negros.
A princípio, duas mulheres e dois homens adentraram o palco iluminado que possuía somente cadeiras brancas amontoadas. O barulho daquelas cadeiras tornou-se ensurdecedor a partir da movimentação do elenco. “Nós”, bradavam. O som – o qual complementa a peça com perfeição – criava uma aura de suspense, angústia. Em encenação que utilizava uma lanterna, sentia-se o poder do teatro, apostando nas sombras, na impressionante expressividade corporal dos atores que pareciam formar um amálgama em um mar de concreto aproveitando todo o espaço que tinham. A liberdade pode ter um gosto amargo? “A vida não é um palco”, diz uma atriz. Há dores e sofrimento reais, e o espetáculo fala sobre isso. As dores e sofrimentos das dúvidas dentro de um conceito de negritude.
Encenação vs Realidade
Frequentemente, dialogando entre estereótipos e experiências singulares, o elenco interage com a plateia, inclusive, conversando entre si sobre as respostas, em um claro estudo conjunto. Ao mesmo tempo, propõe uma naturalização do corpo negro e busca uma identificação, uma aproximação com a plateia. Durante todo o tempo, faz um chamado, uma convocação ao pensamento crítico. “Nós” é uma palavra de relevância. A avaliação da sociedade racista é contundente, em uma mescla de dança, teatro, música, imagens projetadas, ou seja, arte. Uma estética diferente e uma metalinguagem constante, brincando com o próprio teatro o tempo todo. Ou seja, misturando realidade e encenação – da realidade.
O que é um negro? O que é ser negro? Teatro negro? Isso existe? Isto é um Negro? O negro como uma função dentro do sistema capitalista vigente que necessita de escravos. Nesse negro drama, cada um dos quatro do elenco tem seu momento de destaque. O espetáculo tem 1h40min, no tempo psicológico, parece até ter mais. Tem profundidade, a carne é navalha. Estórias de pretos; História dos negros.
Aromas
Pois sim, a peça Isto é um Negro é um mergulho fundo sobre a cultura corrente. Aliás, na saída da exibição, dentro do banheiro, fui urinar. Havia alguém demorando na cabine. Era um senhor branco que cagava. Saiu, começou a lavar as mãos. Eu assoava o nariz e tive vontade de perguntar se ele tinha gostado. Mais ou menos, foi o sinal que fez com a mão direita, que ainda exalava aroma de merda. Perguntei o motivo. Disse que não precisavam ficar nus o tempo todo. No começo até estaria tudo bem, mas depois poderiam ter posto uma roupa, uma sunga, pois ali no teatro iam senhoras e senhores de idade. Além disso, no momento que chegam perto, pelados, cheirando, incomodava – não precisava. Foi quando um negro entrou no banheiro. O senhor dizia que aquela era só a opinião dele.
Afinal, saímos do toalete. Com distanciamento e curiosidade jornalística, sugeri que esse talvez fosse exatamente o objetivo, causar incômodo, desconforto. O senhor pareceu não entender. Estava desconfortável. Falei então que era jornalista. Mudou um pouco o semblante e pareceu querer mostrar conhecimento teatral. Comentou sobre a peça “Navalha na Carne”. Ah, nessa sim estava tudo certo usar linguagem chula, porque era um espetáculo sobre isso, prostitutas, cafetões. Foi o que argumentou. Agradeci por seus comentários. Aparentemente, aquelas navalhas que percorreram o palco, durante quase duas horas, entregues à uma performance perfurante, visceral, usando o teatro – a arte – como ferramenta provocativa e transformadora haviam lhe cortado de alguma forma.
“Eu era a carne, agora sou a própria navalha”
Sobre a peça e a equipe
A saber, a apresentação surgiu a partir das leituras das obras de Fred Moten, Achille Mbembe, Bell Hooks, Grada Kilomba, Frantz Fanon (1925-1961), Sueli Cordeiro e Aimé Cesaire (1913-2008). Dessa forma, foram elaboradas as questões que aparecem em cena. A montagem busca evidenciar o racismo como prática estrutural no Brasil, que segue se perpetuando. A propósito, este é o primeiro espetáculo do grupo, e veio de um processo de criação dentro da Escola de Arte Dramática (EAD/ECA) da Universidade de São Paulo (USP), em 2016. Por fim, o trabalho estreou profissionalmente no mês de março de 2018 no Sesc Belenzinho, em São Paulo – e não parou mais. Inclusive, o grupo é formado por profissionais da dança, do teatro e das artes visuais.
Enfim, veja alguns trechos neste vídeo da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo:
Ficha técnica
Atores: Ivy Souza, Lucas Wickhaus, Mirella Façanha e Raoni Garcia
Direção: Tarina Quelho
Codireção: Lucas Brandão
Dramaturgia: Mirella Façanha e Tarina Quelho
Som: Tom Monteiro
DJ/som: Feliz Trovoada
Luz: Lucas Brandão
Cenotécnicos: Lam Matos
Fotos: Rodrigo Oliveira
Produção: Dani Façanha
Serviço:
Peça “Isto é um negro?”
Local: Sesc Copacabana / Mezanino
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana
Data: 31 de janeiro a 16 de fevereiro de 2020 – Sexta-feira a domingo: 20h
Oficina gratuita ministrada pelo grupo: dias 06 e 13 de fevereiro (quinta-feira).
Ingressos: R$ 30 (inteira) / R$ 15 (meia) / R$ 7,50 (associados Sesc)
Duração: 110 minutos
Classificação: 18 anos
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