Uma pena que uma hora temos que ler a última página…
Faz um bom tempo que não me vejo tarada, esfomeada, viciada em um livro, e “A Palavra que Resta” me presenteou com essas sensações. Aquela vontade de ler, vontade de continuar acordada para ler mais uma página. Que obra gostosa de ler, embora traga uma leitura leve, é preciso ter muita atenção para entender a forma que o autor trabalha com o presente e futuro dos personagens.
É preciso ser perspicaz para não ter que voltar páginas, embora tenhamos que voltar para ler alguns parágrafos, de tão bem escritos, as cenas são desenhadas imageticamente no ato da leitura. Uma obra LGBTQI+, mas tocante para todos, porque há emoção, nos leva a análises o tempo inteiro.
Os desdobramentos da história merecem aplausos, são muitos e nos surpreendem, fazendo que mudemos de opinião todo tempo. Porque somos humanos, e quando tentamos entender alguns posicionamentos é preciso rever histórias, simples assim.
O autor parece ter uma identidade textual simples, mas, ao mesmo tempo, muito rica, muito dono do saber, saber que para levar leitoras as leituras fora de uma tela, com tantos conteúdos por aí, é preciso ser menos formal, afinal já bastam as leituras da academia que somos obrigados a ler para as pesquisas que precisamos desenvolver.
Ao mesmo tempo que temos um entretenimento, temos também um livro que levanta discussões importantíssimas nos dias atuais. O livro conta a história de dois meninos que descobrem a homossexualidade juntos no sertão, e ele traz o trama com sofisticação ao narrar os sentimentos do lugar, existe muita verdade das famílias do interior no nordeste.
É preciso mergulhar fundo para entender um pouco do comportamento do homem no sertão, que carregava ainda mais o machismo, posso dizer que esteve fincado na alma. O amor do pai e ador dele em não saber como lidar com a orientação sexual do filho, ainda mais com experiências passadas na vida desse personagem que julgamos inicialmente. O pertencimento desses sentimentos e vivência do autor o levou a assertividade nas escritas.
O que chamou muito minha atenção é como o autor entre linhas evidencia como o preconceito e falta da educação causa perdas, que excelência, que aula!
Trazer a adversidade de maneira sutil foi de uma delicadeza nada finita do Stênio, não o conhecia, e hoje sinto-me honrada por ter a ciência desse homem das letras ou quiçá do coração.
Ele nos ensina através dos personagens que pessoas estão para além de suas orientações, que cada um de nós pode nos oferecer um movimento para a uma nova vida, basta abrir as portas, dar oportunidades.
E da aceitação do próprio indivíduo com aquilo que parece monstruoso ou anomalia para tantos. Quando isso acontece no livro, o personagem entende que bater no lombo dele passa a doer menos, porque o peso de aceitar o que é, o liberta de uma consciência pesada, dolorida, um verdadeiro fardo, e fardo cansa. Que lindo de ler!
A leitura, embora fale de afeto entre dois homens, fala de amizade também, do perdão, da importância dos laços parentescos e do acolhimento da família, é o que tanto precisamos. Não é mesmo?
Eu oriento muitíssimo a leitura, o livro tem cento e sessenta páginas, mas há tanto sentimento e encantamento que parece ter menos de trinta páginas.
Claro que a obra é da Companhia das Letras, raramente os livros dessa editora me decepcionam e mais uma vez foi assertiva. A diagramação do livro coopera muito para a leitura ser prazerosa, com letras grandes e espaços de linhas bem-vindas.
Estou em êxtase, como uma mulher hetera, afirmo, que é um dos melhores romances que li nos últimos anos. O livro foi emprestado, e farei questão de devolver, porque uma leitura dessa, deve-ser guardada na estante para todo o sempre.
Obrigada, meu amigo homossexual e paraibano Wanderley Gomes, por me orientar a ler esse livro, eu já tinha por você admiração, agora além dela temos mais uma história juntos, eu não merecia tanto…
Sinopse de “A Palavra que Resta”:
Aos 71 anos, Raimundo decide aprender a ler e escrever, carregando uma carta de seu antigo amor, Cícero, que ele nunca conseguiu ler. Criado na roça e impedido de estudar para ajudar a família, Raimundo guarda as memórias de um passado marcado por conflitos familiares e pela dor de esconder sua sexualidade. Com a narrativa sensível de Stênio Gardel, o romance explora o passado de Raimundo e as novas relações que ele construiu ao longo da vida, buscando ressignificar seu destino.
Biografia de Stênio Gardel:
Stênio Gardel, nascido na zona rural de Limoeiro do Norte, Ceará, desde cedo se reconheceu como homossexual e enfrentou desafios pessoais. Mudou-se para Fortaleza em 1997 para estudar e se tornou servidor público. Inspirado pela literatura desde criança, lançou seu primeiro livro, “A palavra que resta”, em 2021. A obra foi finalista do Prêmio Jabuti 2022 e vencedora do National Book Award 2023 na categoria tradução literária, com a versão inglesa intitulada “The Words that Remain”. Esta foi a primeira vez que um livro brasileiro venceu este prestigioso prêmio.
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