Na coletiva de imprensa de M8 – Quando a morte socorre a vida, a maioria das perguntas era sobre racismo. Não havia como ser diferente, depois de um ano (mais um) repleto de violências contra corpos negros. E de tantas semelhanças com situações abordadas no longa.
O trágico e absurdo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, que culminou em manifestações do movimento Black lives matter (Vidas negras importam) no mundo inteiro, ainda reverbera e revolta. George Floyd foi asfixiado por um policial que ajoelhou em seu pescoço em uma abordagem. Algo muito semelhante acontece ao protagonista do novo filme de Jeferson De, que estreia nos cinemas dia 03 de dezembro.
Porém, se engana quem pensa que as manifestações desse ano serviram de inspiração para o cineasta. O filme, vencedor na categoria de Melhor Filme de Ficção, por voto popular, no Festival do Rio de 2019, já estava pronto muito antes do brutal assassinato. O que só demonstra que esse tipo de violência ocorre há muito tempo. E é preciso ser discutido, mostrado, gritado. O audiovisual é uma ótima plataforma para isso.
Racismo estrutural ainda é racismo
M8 – Quando a morte socorre a vida é baseado em livro homônimo de Salomão Polakiewicz e conta a história de Maurício, um menino da periferia que inicia a faculdade de Medicina. Em sua primeira aula de anatomia, Maurício sente uma conexão com o cadáver designado a ele e seu grupo para o estudo, o M8. Por aqueles corpos sem vida serem as únicas pessoas negras além dele na sala, o calouro inicia uma jornada para descobrir quem foi aquele homem que, talvez, seja com quem mais se identifique no local.
Para melhor compreensão, fique com o trailer do filme:
Portanto, não fica difícil entender o motivo das perguntas ao elenco e ao diretor terem sido, em sua maioria, sobre racismo. O filme é uma denúncia ao racismo estrutural presente na sociedade brasileira, mesmo que muitas vezes não enxergado por pessoas brancas. Óbvio, não são elas que sentem.
Mas as pessoas negras sentem. E ele está presente no filme desde o início, quando um colega de classe de Maurício tira a conclusão de que ele é um empregado da universidade. Ou quando Maurício e outro colega vão a um hospital e só são atendidos quando o colega, branco, se dirige à recepcionista, também branca. O longa é uma crítica assumida à forma como essa questão é abordada na sociedade. E em como o governo ajuda a manter a situação como está.
As mudanças de estrutura do audiovisual
O diretor Jeferson De disse ter tido a possibilidade de fazer um filme tão complexo e crítico pela liberdade na produção do longa. Algo que falta no mercado audiovisual brasileiro, onde temos tantas pessoas brancas querendo contar histórias de pessoas pretas. Segundo o cineasta, o cenário audiovisual só irá se modificar se houver disputa de poder por trás das câmeras e se tenha mais diversidade entre roteiristas, produtores e proponentes. É importante, sim, que haja aliados na causa antirracista dentro do audiovisual, mas mais que isso, é preciso que permitam que pessoas negras contem suas próprias histórias. E isso acontece em M8 – Quando a morte socorre a vida.
Diversidade de verdade
Composto por um elenco majoritariamente negro, a produção conta com as participações especiais de Léa Garcia, Lázaro Ramos, Aílton Graça, Rocco Pitanga e Zezé Motta. No elenco principal, além do protagonista Juan Paiva, em uma interpretação certeira, há também Raphael Logam, conhecido pelas séries Impuros e Homens?. O ator, que interpreta o cadáver M8, disse ter sido o papel mais difícil de sua carreira, pela carga dramática que o personagem traz.
Fechando com chave de ouro o elenco principal, Mariana Nunes interpreta Cida, mãe de Maurício. Enfermeira e mãe sola, ela lutou a vida inteira para dar boa educação ao filho. Dona do discurso mais impactante do filme, Cida representa a luta e a força das mulheres negras, que muitas vezes são obrigadas a esconderem suas fragilidades para sobreviver (escute as mulheres pretas sobre essa questão), e é uma homenagem do diretor a todas elas. Mariana apresenta a atuação mais sólida do filme, e quando está em tela consegue captar a atenção do espectador toda para ela. O elenco é cheio de talentos, mas Mariana com certeza é a melhor entre eles. Foi dela, também, uma das falas mais interessantes da coletiva de imprensa: “Representatividade importa, mas só isso não resolve. É preciso mudar a estrutura”. Vamos lutar para isso.
Histórias que importam
É uma pena, porém, que M8 – Quando a morte socorre a vida ganhe lançamento no meio de uma pandemia. Por esse motivo, talvez várias pessoas não assistam o filme em salas de cinema. Contudo, segundo Jeferson, o longa “é um espetáculo em salas de cinema, pois a proposta é entrar em um ambiente de escuridão, que permite com que o espectador enxergue os atores com todas suas nuances e delicadezas”. Feito do diretor de fotografia Cristiano Conceição, que tem como proposta estética a valorização do escuro para realçar, na tela, as histórias dos homens e mulheres representados em cena.
E a história de Maurício, que, em busca da história de M8, acaba entendendo muito mais de sua própria história, é imperdível.
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Muito boa a crítica! Fiquei doida pra ver o filme! Como ela disse, pena que tenha saído no meio da pandemia, vou esperar pra ver na TV! Mas é um assunto super atual e necessário!