Estive no Sesc Copacabana na estreia da peça Isto é um Negro? Peça impactante, bem produzida, com atores excelentes e de uma entrega fora de série. Somos obrigados, forçados a mergulhar no universo visceral da peça ao ponto de nos sentirmos nus, no
palco, incomodados com tantas sensações, questionamentos e reflexões geradas. Longe de mim bancar aqui a especialista em críticas de peça de teatro. Gosto de falar sobre o que sinto, deixo os comentários e análises técnicas e intelectuais para quem
tem mais gabarito para isso. Aqui, neste texto, me permito apenas me abrir, colocar em palavras sensações e reflexões de uma mulher preta que tem muito para falar e que sente, sente muito.
A princípio, a peça traz uma reflexão do que afinal é ser negro na sociedade brasileira. Sem se apressar em trazer respostas imediatas, enfia a dúvida dentro de nós goela à abaixo. Afinal, você sabe o que é ser negro? Silêncio. Saio da peça reflexiva, cumprimento a produtora da peça, agradeço-a. Parei para conversar com dois amigos e rapidamente me vem a mente um turbilhão de pensamentos. Lembrei de um processo seletivo que não fui aprovada por não ser “negra” o suficiente. A peça me fez refletir sobre os padrões e muros que estamos construindo para padronizar e nos distanciar. No mundo branco, existe sempre uma linha a qual nós negros não conseguimos cruzar, isso me faz lembrar do discurso de Viola Davis quando ganhou seu primeiro Emmy de melhor atriz:
“Na minha mente, eu vejo uma linha. Além dessa linha, vejo campos verdes, e adoráveis flores e lindas mulheres brancas com seus braços esticados para mim, acima dessa linha, mas parece que eu não consigo chegar lá, parece que eu não consigo ultrapassar essa linha”, disse Viola Davis homenageando Harriet Tubman.
Guerreiros imbatíveis?
Se essa linha existe no meio branco, no meio negro ela também existe.Uma linha que nos separa por níveis de militância, de resistência, intelecto, de popularidade. Somos cobrados a entrarmos em um padrão, a ter o discurso afiado, conhecedor de todos os livros e guerreiros imbatíveis contra tudo e contra todos. Não existe tempo para dúvidas, para reflexões, para o aprendizado.
Toma, vista essa “armadura”, fale desse jeito, se comporte assim, entre para esse movimento, se empodere, milite, tenha voz, não tenha medo, seja firme, seja forte, grite, leia este livro e mais esse aqui, isso…você está quase lá, falta pouco…seja firme, seja
“raçudo”, engole essa lágrima. O que disse? vulnerabilidade? Isso é papo de branco, não… aqui é resistência, nós por nós.
Quando pensamos que toda a nossa história, cultura foi arrancada de nós, apagada e inferiorizada, como podemos resgatar a nossa verdadeira essência? Como se conectar com a nossa ancestralidade e nos empoderar da nossa cultura e raiz? São anos de
desconhecimento, de não se sentir parte de nada, a sensação de estar fora do seu lugar, de ter que abraçar uma imagem de tristeza, dor e sofrimento pois é essa que eles te ensinaram, essa é a tua história, eles dizem. Apagaram nossas raízes.
A cobrança
Sai pensando o quanto que nós estamos sendo duros com nossas irmãs e irmãos negros que estão caminhando em busca desse resgate, desse reencontro com a nossa raiz, cultura, identidade e ancestralidade. O quanto não estamos cobrando que esse processo de torna-se e compreender-se negro seja rápido, veloz. O quanto estamos criando um muro entre nós e identificando nossos irmãos de acordo com o nível de sua militância e popularidade em discursos e movimentos negros, quando a sua própria existência é um ato de militância e resistência.
Enfim, muitos de nós ainda não despertaram, isso é fato, muitos irmãos ainda perdidos. É preciso estar atento, é preciso que a nossa voz seja firme mas acolhedora também, que desperta mas que se adapta e compreende que nem todos estão no mesmo processo, no mesmo caminho, a dor é a mesma, mas as cicatrizes tem formas diferentes. O caminho até o quilombo não precisa ser só de dor.
Como um negro deve se comportar?
Sou fundadora de um coletivo que atende mulheres negras em situação de rua (@pretas_ruas), lidamos com mulheres vulneráveis que se encontram na base da piramide e muitas são invisíveis para o mundo. Essas mulheres não sabem o que é feminismo negro, não sabem o que é a palavra militância, e ainda assim a sua própria existência é um ato revolução e resistência, seriam elas menos negras por isso? Como um negro deve ser e se comportar na sociedade brasileira de hoje para ser considerado negro? Estamos todos em uma longa e dolorosa caminhada de autoconhecimento, de resgate de nossas identidades que foram apagadas e substituídas por identidades de sobrevivência, onde cada um opta por mostrar-se ao mundo da forma que mais lhe convém e prolonga a nossa existência e sobrevivência.
Por fim, sai da peça sem respostas, mas com a reflexão ainda borbulhando em mim, mas não me permito apenas refletir, eu como mulher preta, militante pela minha própria existência, por mim e por todas mulheres negras, caminho fazendo, caminho ajudando, me permitindo ouvir e aprender, com cuidado, com leveza e ao mesmo tempo com firmeza e consciência de que é preciso resgatar o que de nós foi roubado, ensinando e compartilhando conhecimento com os nossos, para que eles também possam compartilhar com outros e se empoderar do que é seu, da sua essência e identidade. Que esse caminho seja feito com amor, com mais união entre os nossos, com a proteção e o poder dos nossos ancestrais.
A união do rebanho obriga o leão a deitar-se com fome. Provérbio Africano.
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