Crítica
Submissão | Quem tem medo de Michel Houellebecq? Ou, quem tem medo do Islã?
Publicado
3 anos atrásem
Por
Pedro Pessanha
A princípio, é extremamente difícil falar de Michel Houellebecq. Até porquê ele não ajuda muito. O escritor é uma polêmica ambulante. Apesar de ter ótimos livros, gosta de falar muita besteira, inclusive, dá entrevistas onde faz questão de ser escatologicamente desagradável. Ele criou há muito tempo uma persona que encarna até hoje, um pouco do estereótipo blasé francês de quem não tem muita esperança e não está ligando muito pra nada, então fala com desprezo enquanto fuma um cigarro de maneira descompromissada. Logo, qualquer um que tenha o mínimo de noção começa um texto sobre ele, ou suas obras, esclarecendo que não necessariamente concorda com suas declarações ou com suas personagens. Aliás, é exatamente isso que estou tentando fazer agora.
Submissão
Submissão é um romance que mesmo antes de ser lançado causava enorme desconforto. Quando foi lançado foi ainda pior, pois foi no mesmo dia do atentado à sede do semanário Charlie Hebdo. Inclusive, Michel Houellebecq estava na capa do jornal nesse dia. Como se não bastasse, um grande amigo seu morreu no atentado. Foi o economista e marxista Bernard Maris. O atentado foi um choque para toda França e também para o escritor. Ele perdeu um grande amigo e considera o ocorrido o maior ataque à liberdade de expressão da história do país. Agora em 2020, o jornal publicou novamente charges do profeta Maomé. Declarou que não se dobrará à ameaças e manteve seu posicionamento polêmico.
As sinopses normalmente descrevem Submissão como uma “distopia” em um futuro próximo (2022) onde a França, e depois a Europa, passa a ser governada por uma frente política islâmica. Assim, o narrador vivencia essa mudança social e política. Não é bem a minha interpretação do romance, penso que esse seja um plano de fundo para outras questões, e é isso que vou tentar discorrer agora.
Professor Doutor François
Bom, logo de início temos a apresentação em primeira pessoa do narrador e protagonista, François, um professor universitário. Desde os primeiros parágrafos ele vai falando de praticamente toda sua carreira acadêmica. Desde a faculdade até sua posição de professor Doutor na Sorbonne. Entrelaçado ao seu caminho acadêmico François descreve suas relações pessoais, sexuais, sua personalidade e mediocridade. Ele não esconde nem um pouco que é egoísta, egocêntrico, machista, preconceituoso e que tenta compensar todos os fracassos pessoais em uma carreira acadêmica. Carreira essa que mesmo segundo ele, não tem absolutamente nada de extraordinária. Ou seja, François é um grande babaca, e ele sabe disso, não procura esconder do leitor.
Esse histórico de sua vida acaba e se mescla ao presente de maneira muito orgânica. Nesse presente, François mantém uma relação basicamente sexual com Myriam, uma menina judia de 22 anos, metade da sua idade. Ela era sua aluna. Além disso, continua descrevendo seus companheiros de profissão. Sempre falando de suas teses de doutoramento e demonstrando desprezo, ou diminuindo-os. Em geral, a maneira que o autor aborda o universo acadêmico é com profunda ironia e desprezo. Contudo, em alguns muitos momentos, é bem condizente com a realidade.
Mudança política
Em seguida, no segundo terço do livro entra em cena a questão que as sinopses apontam como ponto central: a islamização política e cultural européia. Misturando personagens reais da política francesa e européia com elementos ficcionais, Michel Houellebecq cria uma eleição onde um partido islâmico consegue formar alianças e chegar ao poder. Ao mesmo tempo extremistas de direita, conservadores em geral, temem essa chegada e ensaiam uma guerra civil. No final acaba não passando de algumas confusões pontuais abafadas pela imprensa. Sem muita resistência e praticamente nenhuma violência a França passa a incorporar a cultura islâmica, à começar pelas Universidades.
Para François o primeiro impacto foi sua jovem namorada. Ela fugiu para Israel com a família antes mesmo das eleições acontecerem e o deixou sem um “refúgio feminino”. Refúgio esse que ele buscou saciar com prostitutas (que o governo muçulmano não interferiu na existência). Depois disso foi aposentado com uma confortável aposentadoria, e ficou com tempo o bastante para sentir-se inútil e deprimido.
Polêmicas
Houellebecq foi acusado de ser islamofóbico, e também foi acusado de ser conivente com “terrorismo” por conta desse livro. O ponto é que independente do que pensa Houellebecq, Submissão expõe o medo do cidadão médio francês, e talvez europeu. O cidadão medíocre não está muito preocupado com os acontecimentos políticos ou históricos, é racista, é preconceituoso. Ele está mais preocupado com a manutenção de seus privilégios. O cidadão médio francês é François. Que tinha como maior preocupação a falta de corpos femininos expostos nas ruas e na universidade. Situação que fazia seu apetite sexual diminuir.
Declínio do Império
É importante aqui esclarecer algumas coisas. A França é um país que está inserido em um contexto democrático bem estabelecido e em uma tradição “das luzes”. Além de ser um país imperialista – mesmo que não haja muito esforço de se lembrar esse fato por parte da população, até mesmo por parte do autor, que chega a dizer nem se lembrar “dessa questão” em entrevista (abaixo). É uma situação que difere bastante do Brasil, por exemplo, país que não tem nem 30 anos de experiência democrática. Essa democracia européia, assim como em muitas partes do mundo, se vê em um momento de crise. Boa parte da população não se sente mais representada por esse sistema, e isso é expresso de muitas formas. Algumas estão ilustradas no romance.
Assim como a democracia, a cultura européia se vê em franco declínio. Afinal, a França, que esteve nas vanguardas do pensamento cultural e intelectual do mundo ocidental, parece sentir esse baque com um gosto especialmente amargo. A hegemonia cultural do ocidente é constantemente posta em pauta e questionada. Aliás, a cada ano que passa fica mais frágil. Essa fragilidade tende a gerar um sentimento de revolta, uma reação que cria pensamentos reacionários e um “nacionalismo tribal” que é ilustrado no romance pelos “identitários”.
François é um exemplo dessa população média que assiste à tudo apática, e que tem como objetivo manter um conforto. É um intelectual preocupado com satisfação de seus prazeres, sejam eles sexuais, gastronômicos ou egoicos. É uma pessoa que nunca se interessou por política, pois suas necessidades estavam satisfeitas, e jamais pensaria que uma mudança política mudaria bruscamente sua vida. E na verdade não mudou tanto. Como o romance bem ilustra, sua adaptação foi relativamente fácil e conveniente.
Sagrado e sensível
Michel Houellebecq ilustra muito bem também o retorno do sagrado que é uma questão contemporânea. Depois de Nietzsche matar Deus um século atrás, hoje vivemos um retorno à religiosidades. Esse retorno é expresso de muitas formas, desde uma volta à um cristianismo radical, até um crescimento da religião islâmica com conversão do ocidente. Mas nesse meio percebe-se também uma série de religiosidades não necessariamente institucionais. No Brasil, vê-se o crescimento colossal das igrejas neopetencostais e do conservadorismo cristão. E há um crescimento considerável da fé muçulmana que tende a ser a maior no mundo.
Submissão esbarra em muitas questões sensíveis para várias pessoas, e não se preocupa em fazer isso de forma delicada. Expõe um declínio de um império europeu. A volta às religiões e tudo que envolve o sagrado. Preconceitos descarados. Mas principalmente expõe um recalque extremamente presente. Expõe uma sociedade frágil e assustada que se adéqua à situação. Mantém-se apática, aceitando tudo. Ou late ferozmente enquanto foge, como o pinscher assustado daquela tia avó.
Desconforto necessário
Michel Houellebecq é o autor francês mais lido da atualidade. Tanto na frança como fora e isso quer dizer alguma coisa. Definitivamente ele não é um bom moço, não tem atitudes louváveis, não é um exemplo a ser seguido. Mas afinal, a arte precisa de alguém que enfie o dedo na ferida e pressione. Precisa de alguém que cause desconforto, ninguém pensa profundamente lendo ou vendo coisas confortáveis. O que é confortável dificilmente levará à mudanças de pensamento.
Enfim, Michel Houellebecq não é o melhor autor que você lerá. E talvez não seja um autor para qualquer um ler, pois é muito fácil cair no papo de François e pensar com sua cabeça extremamente babaca. Contudo, Submissão é um romance interessante para se pensar a sociedade no século XXI. É importante para pensar quais são os medos e anseios de todos os François que estão por aí. E lembrar que nada é preto no branco, mas sim em escala de cinza. Afinal, o mundo não é binário, como muita gente – dando murro em ponta de faca – tenta impor até hoje.
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Historiador, mestrando em história do Brasil. Se interessa por arte de todo tipo e suas ligações com história, política e com a vida.

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Publicado
2 dias atrásem
31 de março de 2023Por
Sara Freire
O terror que entrega mais atuação do que enredo
A Primeira Comunhão, filme do diretor espanhol Victor Garcia, conhecido pelo premiado filme De Volta a Casa Da Colina (2007), traz a história de Sara, uma adolescente simples e com dificuldades para fazer amizades na nova cidade. Após mudar com sua familia para o interior da Espanha, Sara conhece Rebeca, uma adolescente rebelde e mal falada na cidade que em determinada noite leva Sara para uma balada um pouco distante de sua casa.
Porém, na volta, as duas se arriscam ao pedir carona para o traficante da cidade. No trajeto Sara avista uma menina vestida de branco com uma boneca de primeira comunhão na mão. Após Chivo parar o carro assustado, Sara desce a procura da menina, Rebe a repreende e pede para que volte para o carro e em seguida a personagem principal encontra a fatídica boneca. Rebeca e Chivo, que já conheciam sobre uma antiga lenda da cidade acerca da garota e da boneca, a chamam de volta para o carro, mas Sara leva a boneca consigo. Dessa forma, a partir daquele momento, todo o grupo é amaldiçoado pela boneca e por Marisol (a dona da boneca).
Pontos positivos
Um dos maiores pontos positivos do filme é a capacidade do elenco de entregar ótimas atuações, dando ênfase a Aina Quiñones, que interpreta Rebeca. Em seu show particular, Aina entrega tudo que se espera de um filme como esse: medo e aflição. Uma das cenas que envolve o pai de Rebeca é digna de prêmios, um pai que só maltrata a filha e a trata do modo visto no filme, ao ver a filha em possessão se desespera ao ponto de arrombar uma porta e trazer emoção pura a cena.
Já o ponto alto se mostra já pelo final, em uma cena em um poço. A atuação de Carla Campra é simples, mas no momento dessa sequência se faz importante e mostra como a simplicidade pode agregar muito a uma obra. Vale ressaltar sobre a atuação de Carla no momento do acidente de Chivo, onde a mesma entrega emoção e desespero, um momento que com certeza é marcante ao mostrá-la como indefesa diante de toda situação.
Aliás, veja o trailer de A Primeira Comunhão, e siga lendo:
Afinal, A Primeira Comunhão traz um terror genérico, mas com boas atuações e cenas de suspense. Sente-se a falta da trilha que leva o publico a estar mais concentrado no filme e até mesmo a se sentir mais imerso naquela realidade. A obra aborda temas que a indústria espanhola vem utilizando cada dia mais como a amizade e o romance adolescente. Um ponto que pode incomodar aos românticos de plantão é o fato de Sara e Pedro não se aprofundarem em sua relação e nem mesmo terem tantas cenas românticas do único casal abordado no filme.
No geral o filme é bastante conveniente para aqueles que curtem um terror básico, mas que ainda sim entregue o suspense digno de filmes do segmento. Algumas cenas como o terror familiar de Rebeca podem vir a gerar gatilhos a quem passa ou já passou por situações parecidas. mas sem dúvidas é um tema importante a ser abordado.
A Primeira Comunhão (The Communion Girl), com distribuição da A Paris Filmes, está nos cinemas brasileiros.
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