De uma inquietação da documentarista Joana Nin surge esta obra fantástica “Proibido Nascer no Paraíso” que, alcançando o devido destaque, pode reverter injustiças e permitir uma existência honrada às famílias diretamente atingidas. Para entender sobre a origem deste trabalho, leia aqui nosso texto anterior sobre o filme, pois a partir daqui, a elaboração da crítica abordará os sentimentos e racionalizações sobre o que foi apresentado em tela.
Todo ser humano, por mais imparcial e isento que seja, têm em si sua base moral, ética e visão sobre o mundo. O mundo de onde o vejo, pode e deveria ser mais gentil e sensível às necessidades subjetivas, àquelas que se negligenciadas causam feridas na alma, não detectáveis por escâneres ou raios-X, mas que no olhar transparecem e transbordam dor, sofrimento, indignação e revolta. Em meu entender, e creio que de muitos, é pior perder a esperança do que bens materiais, pois a esperança no futuro não é recuperada com lavoro, ela é arrancada do peito, cria-se um vazio, e nele nada germina, nada brota, é roto e estéril.
Estéril (oposição a fecundo) é exatamente como me sinto com essa declaração. Não sou daquelas que prega exercício compulsório da maternidade, não acho que filhos são uma completude ou a continuação obrigatória da vida, mas sim uma realidade, algo que pode ser planejado ou fruto de um momento bom ou até mesmo ruim e traumático, é resultado da história de uma ou duas pessoas que merece cuidado e amparo, acompanhamento contínuo em respeito a sua dignidade como indivíduo capaz e único.
Colapso mental
Se soubesse que jamais poderia retornar ao local onde nasci, por ter retirada de mim esta escolha, entraria num colapso mental e em desconexão com minha interpretação sobre quem sou, tamanha a ligação e importância desta relação. O local que me recebeu neste mundo, bom ou mau, é meu, o sinto, e cabe a mim ver e pensar sobre sua beleza e suas tristezas; pertenço à aquele lugar da mesma forma como ele me pertence, é uma troca e um desejo; seres e suas terras tem ligações fortes e alterar impositivamente esta realidade pode ser uma punição.
Já em tempos muito antigos, ligados às polis gregas, o ostracismo já era utilizado; Sócrates já fora punido desta forma, sendo obrigado a não regressar ao local que nasceu sem saber se teria novamente contato com qualquer um que fizera parte de sua vida ou se retomaria sua participação pública na sociedade. O ser humano é essencialmente social. Inverter o processo, negando o local do nascer, é cruel, inaceitável, viola direitos naturais; é planejado, escuso e vil. Acima disso, arquitetado como projeto orientado a interesses mercadológicos.
Gentrificação
Vemos em “Proibido Nascer no Paraíso”, abertamente, hipocrisias, clivagem social e tentativa de gentrificação. Palavras difíceis que classificam a ação da retirada de classes ou povos de suas terras por não se alinharem aos interesses econômicos e políticos dos que detêm o poder. O mundo não nasceu monetizando cada relação e objeto. Historicamente documentado, sabemos que havia espaço para as relações livres, cujo contato se dava por prazer e comunhão, seja entre pessoas, com o ambiente natural ou sua espiritualidade, muitas vezes priorizando o bem estar e a solidariedade.
Hoje, porém, quem se opõe à exploração financeira generalizada é visto como obstáculo, entrave, algo a ser sobrepujado, seja na base da força, seja subjetivamente deixando-o sem referência de pertencimento futuro.
As consequências desse tipo de abordagem são o apagamento histórico, o fim de um modo de vida, narrativas que não poderão ser contadas e fatalmente tenderão ao esquecimento. Foi assim com os povos originários de um Brasil não descoberto, mas invadido, saqueado, corrompido, violado e condenado à perda de sua história.
Nascimento
O que acontece naquelas ilhas, tão distantes, mas tão nossas; orgulho da nação e tesouro do atlântico, não pode ser ignorado. Conhecemos as noções continentais do país que habitamos, sabemos que a saúde pode melhorar muito para de fato atender bem sua população, mas, afinal, por qual motivo se dedica tanto tempo e esforço político para conter o nascimento naquela ilha?
Ilha exceção da realidade, por certo, que deve ser preservada e mantida dentro das normas de ocupação e turismo sustentável sim, mas que também deve coexistir com aqueles que têm direito, ainda que tutelado, ao território.
Será que haveria, de fato, tanto cuidado com o local e forma de nascimento destes bebês, caso não tivessem estes o direito de pleitear um termo de permissão de uso e ocupação na ilha? Será que o constante crescimento hoteleiro em nada tem a ver com o fato de que estas pessoas aos poucos perdem o direito de viver e trabalhar num local que garante mais de 100 mil visitas de turistas todos os anos?
Por qual motivo as crianças nascidas em recife não podem retornar à Noronha antes de serem registradas para terem na certidão o local de origem de seus pais que “por cuidado” do Estado tiveram que nascer em outro local? Qual outra cidade do país sem UTI neonatal transfere e custeia por meses o nascimento de seus bebês em outro lugar?
Por que?
Por qual motivo uma ilha como Fernando de Noronha, riquíssima de belezas, turistas e dinheiro, não reparte o que recebe em taxas de permanência e preservação, com sua comunidade local, já tão enxuta? Não teria o distrito como custear um leito neonatal e como pagar um anestesista local, uma vez que seu orçamento advém da união? Parece-me risível responder estas ultimas de forma negativa, ou no mínimo ingênuo e desconectado da realidade.
O jorro de palavras e conceitos aqui apresentados tem fundação em minhas próprias memórias e estudos; no fato de viver hoje longe de onde nasci e no fato de que tudo que me é especial, como fora meu casamento, ter sido realizado em minha terra natal, pois nenhum outro local me faria sentido.
Vivo afastada por necessidade, para realização profissional e por desdobramento do destino, mas é ali naquele rincão que pretendo parir e ver crescer meus filhos, pra que sejam tão daquele lugar quanto eu e que aquele chão tenha uma parte minha com que possa contar. Local do nosso imaginário comum, foco da partilha de momentos intangíveis incalculáveis.
Eu pretendia finalizar esse texto de outra forma, criando uma ligação mais metafórica para que se pudesse fazer compreender melhor tudo que o tema desperta, mas não fui capaz de simplificar, é um problema complexo, são esdrúxulas as motivações por trás da perpetuação dessa prática, a comoção e manifestação contrárias são urgentes. Que ao menos se escute e construa junto daquela comunidade nova diretriz e práticas que os beneficie e respeite.
Aliás, veja o trailer de “Proibido Nascer no Paraíso” e siga lendo:
Lágrimas
Ao reler meu texto até aqui junto de meu marido, caí em lágrimas; um torrencial delas; não consegui manter o foco e demorei em retomar a escrita.
Parei e refleti sobre o quão forte estas histórias me atingiram. Eu que sempre fui alcançada por sentimentos através nas menores delicadezas desse mundo, por emoções que fazem parte indissociável de mim; que as transpareço com um orgulho imenso, mas que neste caso surgiram de algo bruto e agressivo demais; tremo de raiva e impotência, choro por ver nestas mulheres, a mim, amigos, parentes, colegas de trabalho; pessoas que desejam vivenciar o parto cada qual a sua maneira e cercados daqueles que lhes são estimados; ato tão íntimo, um momento de exaltação a capacidade física do nascer, um útero que sempre encontrou imposição e controle ao longo da história. Justamente aquilo que nos diferencia da fisiologia oposta, território ainda desafiante ao dominante, alvo de revolta e opressão constante.
Encerro aqui minha crítica de “Proibido Nascer no Paraíso” agradecendo imensamente à idealizadora e à equipe por tornarem pública e possível materialmente o conhecimento sobre o que acontece em nosso próprio território, muitas vezes alvo de preconceito e críticas infundadas de seus compatriotas, que embebidos numa lógica cega de consumo e lucro desenfreado, esmagam e mutilam vidas com propósito distinto do seu.
Solidarizo-me pessoalmente em compartilhar o que se passa em Noronha com o maior numero de pessoas, entidades públicas e da sociedade civil para que o mais breve possível sejamos tantas contrárias que não tenha forma de manterem inalterada esta realidade de abuso e descaso. Contem comigo.
Parabéns Bia! Eu não sabia que isso acontecia. Comsegui sentir a dor dessas mães! Quero muito.ver o filme! Vc tocoi num ponto muito importante! ????????