Fico Te Devendo Uma Carta do Brasil é um documentário investigativo –e íntimo– da cineasta Carol Benjamin, que mergulha na história das três gerações de sua família, atravessada pelas marcas que a Ditadura Militar deixou. Seu pai, Cesar Benjamin, foi ilegalmente preso e torturado aos 17 anos. Sua avó, Iramaya Benjamin, tornou-se militante incansável pela anistia por conta da prisão de Cesar. Entre mãe e filho formou-se um abismo de silêncio que a diretora procura não repetir com seus filhos.
Para entender melhor o passado de sua família, Carol parte para Estocolmo, Suécia, onde seu pai ficou exilado por dois anos. Lá, recolhe depoimentos e arquivos de alguns membros da Anistia Internacional, que a ajudam a preencher lacunas dessa história. Somado a isso, o longa conta também com narrativas na voz de Carol, relatos de sua avó e de seu pai em distintos momentos, fotografias, notícias da época e imagens raras de arquivo.
A saber, a atriz Leandra Leal e Rita Toledo produziram a película. Esta estreou mundialmente em 2019, no 32ª IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, conquistando a menção especial do júri.
Este ano, será exibido no 25º Festival É Tudo Verdade, na Mostra Competição Brasileira de Longas e Médias-Metragem, e tem estreia marcada para 02 de outubro, às 21h e reprise no dia 03 de outubro, às 15h.
História através de cartas
Em sua estreia na direção de um longa-metragem, Carol Benjamin se debruça, ao longo de 88 minutos, em narrativas epistolares que, não à toa, são as que a contam um outro olhar sobre o passado de seu pai e sua avó. Desse modo, as cartas parecem um personagem onisciente à parte, soando como testemunhas das angústias e desejos sentidos pelos protagonistas da história.
Há uma quebra do silêncio que permeia a família através de cartas trocadas entre Iramaya e Marianne Eyre, membro da Anistia Internacional e amiga confidente. Com isso, Iramaya descarregava sua dor, sua solidão, seu desejo incansável por justiça a seu filho e compartilha sua tentativa de dar um novo rumo ao seu destino, após seus filhos seguirem suas próprias vidas.
Inclusive, o título da película é uma frase extraída de uma de suas cartas, na qual ela conta tanto sobre sua vida, que se sente em débito com a amiga e finaliza: “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil.”
É também por meio das cartas de Cesar, já exilado em Estocolmo, que conhecemos sua rotina que se dividia entre estudar sueco e trabalhar como faxineiro de uma escola.
Silenciamento do trauma
Cesar Benjamin foi preso em 1971, aos 17 anos, na Bahia, envolvido, juntamente com seu irmão Cid, no sequestro de uma embaixador norte-americano, no Rio de Janeiro. Cid foi banido para a Argélia. À época, policiais tentavam omitir a prisão de Cesar, mas Iramaya recorreu ao Ministério da Guerra, que confirmou a prisão de seu filho.
O então adolescente sofreu torturas. Sua pele queimada por cigarro, seu corpo ficava nu em uma cela fria, levando baldes de água fria. Assim, permaneceu três, dos cinco anos preso, em solitárias, na companhia de aranhas e lagartixas. Cesar conversava sozinho por conta da prolongada prisão. O psiquiatra que acompanhava o caso dizia ser normal este comportamento.
Ademais, há uma passagem de uma das cartas de Iramaya que é, no mínimo, dilacerante. Logo, ela retrata a extrema solidão de seu filho, quando este descreve, em detalhes, a vida de lagartixas e aranhas que coabitavam sua cela. Eram a distração e as companheiras de cela. Além dos bichos, Cesar preenchia seu tempo com música e leituras de obras literárias e filosóficas que sua mãe enviava.
Com isso, após a liberdade, o pai da cineasta lidou com o trauma silenciando-o do mundo –ou ao menos da sua família. No início do longa, Carol compara seu pai a uma caixa-preta e explicita que ele não quis se envolver em seu projeto. Mas mesmo assim, ela quis quebrar esse hiato presente em suas vidas e tentou resgatar com as próprias mãos esta memória.
Iramaya Benjamin
O fio condutor sobre a história de Cesar toma outro rumo quando a figura de Iramaya cresce na narrativa. Ney, coronel do Exército, seu marido e pai de seus filhos, se absteve de lutar junto a ela. Assim, acompanhamos também a solitária saga de uma mãe pela liberdade do filho.
A triste reviravolta na vida de Iramaya a tira da posição de “dona de casa pacata” e a torna uma incansável militante pela anistia. Com isso, ela foi membro do Comitê Brasileiro Anistia e articulou com membros da Anistia Internacional pela soltura de Cesar. Graças à pressão que a Anistia colocava sobre os militares e o presidente Ernesto Geisel, este acabou por conceder a liberdade a seu filho.
Após a soltura de Cesar, houve um incômodo abismo entre ele e sua mãe. De um lado, Iramaya recontruía a história de Cesar com suas palavras. De outro, ele cultivava o silêncio e o apagamento de suas memórias.
Olhar no futuro
Através do recorte histórico feito a partir de uma experiência pessoal de Carol –recurso também utilizado por Petra Costa, mas com menos poesia–, relembramos com pesar essa mancha na história do Brasil. Algo que os próprios militares tentaram desrespeitosamente ocultar.
Na promulgação da Lei da Anistia (1979), o então presidente João Figueiredo brada: “Certos eventos, melhor silenciarmos em prol da paz da família brasileira.”
Após quase 30 anos de ditadura, instaurou-se a Comissão Nacional da Verdade no Brasil. Já encaminhando para o fim do longa, há o discurso emocionado de Dilma Rousseff na inauguração da Comissão.
Voltar o olhar para o passado e pará-lo em nosso presente, no qual o atual presidente é publicamente apoiador da Ditadura, causa uma sensação de impotência e dúvidas sobre o futuro.
Com isso, Carol Benjamin finaliza Fico Te Devendo Uma Carta do Brasil narrando uma carta que escreveu aos filhos, mas que serve também como um apelo ao não silenciamento. Segundo ela, “os silêncios são a borracha da memória” e impedem que sejamos protagonistas de nossa própria história.
Por fim, seu desejo em lutar contra a atual distopia e tentar proporcionar um mundo melhor aos filhos não é solitário. É uma vontade compartilhada, Carol.
Afinal, veja o trailer:
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