A seguinte crítica apresenta spoilers do filme Pecadores.
Em uma época que os filmes apresentam tão pouco tempo em cartaz antes de ir para o streaming, acredito que algumas produções perderam a “escala cinema” por assim dizer. Grandes diretores como Christopher Nolan e Martin Scorsese costumam sempre elevar suas produções para um novo patamar, porém, a grande maioria das produções costuma esquecer todas as inúmeras possibilidades que a sétima arte possui, ainda bem que Pecadores não é uma delas.
Ryan Coogler sempre se mostrou um diretor competente, afinal, é o responsável por grandes sucessos como Creed (2015, Ryan Coogler) e Pantera Negra (2017, Ryan Coogler), assim, após mostrar seu potencial, é muito gostoso observá-lo fazer um filme mais autoral, um filme que ele defende como uma carta de amor ao cinema, algo que ressoe de uma forma única com sua ancestralidade, com o modo dele enxergar o mundo, e não somente um blockbuster baseado em uma franquia pré-existente.

Utilizando a produção para entrar em contato com suas raízes negras e lidar com o falecimento do tio, Coogler dirigiu, roteirizou e produziu Pecadores. A produção se passa em 1936, no estado do Mississipi, o centro da cultura negra norte-americana, acompanhamos o protagonista Sammie, interpretado pelo cantor e compositor Miles Caton, um jovem que deseja sair deste sistema tradicional familiar que está inserido. Sua chance surge quando seus primos, Smoke e Stack, ambos interpretados por Michael B. Jordan, voltam para o estado após uma temporada em Chicago.
A partir desta premissa, e do objetivo dos gêmeos de construir uma casa de shows para negros, Pecadores se torna uma produção rica em simbolismos e misticismo, desde a sua primeira sequência animada, é estabelecido o clima sobrenatural do filme: o poder que a música apresenta para quebrar barreiras entre a vida e a morte, algo que conduz a narrativa e traz momentos de destaque esteticamente.
Confira o trailer de Pecadores e continue lendo:
Pecadores é um grande filme tanto simbolicamente quanto literalmente, afinal a produção apresenta duas horas e 20 de duração. Com uma quantidade tão grande de simbolismos, não é possível pegar todos em somente uma assistida, assim, para esta análise crítica, dividirei o filme em 4 características estéticas e técnicas essenciais que o fizeram ser um filme tão grandioso e tão bem recebido pela crítica internacional.
A primeira é o dedo forte da direção. Ryan Coogler se utilizou bem de sua referência principal: Um Drink No Inferno (1996, Robert Rodriguez). Da mesma forma que o filme de Rodriguez, Pecadores apresenta uma primeira metade mais pé no chão e uma segunda metade voltada para o sobrenatural, aonde seus protagonistas conseguem encerrar seus arcos por meio da união contra um inimigo em comum. O contraste entre estas duas partes poderia ser uma ponto fraco para Pecadores, se não fosse o olhar atento de Coogler na construção de um misto de arte, e entretenimento pipoca de duas horas, sendo tudo conduzido por um meticuloso roteiro.
Pecadores é um cinema clássico do começo ao fim, prendendo o público com piadas pontuais e doses de tensão concentrada, com um protagonista e uma jornada clara, apesar do sobrenatural em seu terceiro ato, ele explora a fundo seus personagens e retrata a história do negro da América com direito à presença da Ku Klux Klan, o embate racial entre negros e brancos e a busca por uma sociedade mais unificada. É justamente esta sociedade mais unificada que abre margem para se discutir os vampiros e o desejo de uma sociedade sem preconceitos de qualquer tipo, e coincidentemente, ou não, temos a questão da descendência irlandesa de seu líder.

Michael B. Jordan em Pecadores- Divulgação Warner Bros
Acredito que jamais será igual, porém, o irlandês pode ser enxergado socialmente como o “negro da Europa”, por conta de um senso de discriminação social e regional que permeia o continente, não por acaso que ele é tratado de forma exagerada e preconceituosa em diversas produções cinematográficas, até mesmo na temporada mais recente de Only Murders In The Building (2021, Steve Martin), semelhante à personagens negros desde antes de O Nascimento de Uma Nação (1915, D.W. Griffith), assim, este simbolismo permeia por todo o filme e é auxiliado mais ainda pela fotografia.
Em um vídeo feito para o YouTube da Kodak, Ryan Coogler exemplifica diversas características técnicas utilizadas em Pecadores, desde a filmagem em película para maior realismo e um destaque na estética chiaroscuro, até os diferentes aspect ratio usados ao longo da produção, as famosas janelas de projeção que permitem que o filme “cresça” em cenas de acontecimentos emocionais, de lutas ou de dança. Além disso, o filme também apresenta interessantes planos sequências e uma conversa muito clara entre fotografia e som.
O compositor Ludwig Göransson apresentava um playground imenso em Pecadores, buscando inspirações que vão do blues e raizes africanas, algo muito ligado ao sobrenatural e ao misticismo, explorado em uma performance que literalmente transcende o tempo, até uma cena maravilhosa de riverdance que leva o espectador ao êxtase. Göransson já trabalhou com Coogler em outras produções, assim, consegue passar toda a grandeza pretendida pelo diretor, e que se soma a um design de som aterrorizante que aumenta a tensão e o horror do filme, por meio de quedas súbitas de intensidade sonora.

Hailee Steinfeld em cena de Pecadores– Divulgação Warner Bros
Pecadores é um filme para cinema, apesar de uma mudança de tom nítida, a produção apresenta um domínio grande de sua linguagem, utilizando tudo o que a sétima arte consegue transmitir, dentro de um filme que com certeza não agradará a todos, porém, é um deleite narrativo, catártico e estético para aqueles que embarcarem na jornada de um jovem filho de pastor, dois gêmeos, muitos simbolismos sociais e um terceiro ato sanguinário, sem deixar de ser poético.
Siga-nos e confira outras dicas em @viventeandante e no nosso canal de whatsapp !