Filme brasileiro com direção e roteiro de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães, Transe mergulha no relacionamento de um “trisal” enquanto a onda bolsonarista ganha o país, momento em que percebem viver em uma bolha social.
Chego para assistir à estreia no Festival do Rio a convite deste portal, e estou lá, agora. O filme termina com um belo ato musical, acompanhado de aplausos da plateia. Um dos atores protagonistas está sentado no chão da sala de cinema, bem na minha frente. Ele abaixa a cabeça e faz uma espécie de prece. Minha cadeira é dura, pois foi colocada só pra mim, no canto da sala, próximo ao extintor de incêndio. Todos aplaudem, se abraçam e cantam músicas políticas. Levanto com a bunda doendo, doido pra mijar. Mas, para chegarmos até aqui, e ao que achei da obra, preciso voltar no que aconteceu comigo até o filme começar.
Breve perfil
Sou nascido e criado na Tijuca. Tijucano mesmo, raiz. Lugar de um conservadorismo de classe média notável, mas também de uma malandragem da Zona Norte muito peculiar. Sempre nas ruas, nos bailes do Salgueiro, nas madrugadas do Méier, Engenho Novo e Cachambi, só aceitava zoação por ser Tijucano de quem era da Zona Norte, os quais dizem que Tijuca é Zona Sul (se fudê) – atravessar o túnel me dava calafrios. Estudei em escola Adventista e fui evangélico por alguns anos, lá não podia beber, então acabei me desligando. Meu primeiro emprego foi como garçom, depois barman – por muitos anos – antes de finalmente ir para as artes e atravessar para o “outro lado do túnel”. Morei por oito anos no Catete – local que deveria ser um patrimônio cultural do país – um bairro que até possui uma língua própria (que, por sinal, a gente aprende na Tijuca também). Mas o TTK, por si só, já se destaca bem de um bairro estereótipo da zona sul. Foi rápida a integração.
O caminho
Estava em Petrópolis, na casa de mamãe, quando peguei o ônibus cedo, para chegar pelo menos vinte minutos antes. Quis me adiantar porque, na dúvida, não conheço nada na Gávea, lugar onde descobri que se passam a maior parte dos filmes do Festival do Rio. Peguei um transito infernal na Linha Vermelha, o que começou a me desesperar. Chegando na Carioca, fui de metrô até o Leblon, imaginei que era o local mais perto. Perguntei a um taxista onde ficava o Estação Net Gávea, e corri na direção indicada. Chegando onde poderia ser o local, não achava a sessão de jeito nenhum. Perguntei para o segurança do Shopping da Gávea, ele confirmou que o cinema era lá mesmo. Entrei voado. Me perdi. Fui no balcão de informações e a moça me indicou o último andar. O shopping estava relativamente vazio, peguei duas escadas rolantes e o elevador.
O transe
A porta do elevador se abre e a sensação foi de entrar no paraíso, ou algo assim. Muita gente feliz, arrumada, se abraçando e tirando fotos. Clima de festa. Por isso, enfrentei e furei a mini-multidão com aqueles macetões que se aprende no trem ou no carnaval do Rio. Felizmente faltavam ainda os exatos vinte minutos para o filme. Avistei uma cabine de informações, então perguntei sobre a lista de convidados para o filme. Indicaram uma bancada que ficava ao fim de umas fitas de demarcação. Chegando lá, encontrei uma mulher muito bem arrumada, mordendo as hastes de um óculos vermelho que segurava com a mão.
– Oi, boa noite, tudo bem? Meu nome é Diogo Vianna, vim assistir Transe.
(Ela me olhou um por um tempo nos olhos)
– Transe?
– Sim, isso.
(Ela pegou uns papéis, vi que era a lista.)
– Infelizmente seu nome não está aqui.
– Oi?
– Oi.
– Pode verificar de novo?
– Não está, mesmo, desculpe.
– Ok.
Fiquei muito bolado.
Saí dali atravessando novamente a mini-multidão de abraços e fotos.
Em frente ao banheiro, liguei exaustivamente para o editor do portal para entender o ocorrido. Ele não atendia. Escrevi dizendo que ia embora. E fui.
Voltei, achei que podia tentar de novo.
Fui lá na moça que roía hastes. Ao invés de abordar de frente, fui pelo lado dela agora, para tentar ser mais sutil.
– Oi, eu de novo. Você poderia dar uma olhada mais uma vez se meu nome está aí?
– Qual seu nome mesmo?
– Diogo Vianna
(Ela começou vendo pelo final da lista, depois pulou para o início, só então olhou as páginas do meio. Achei legal a técnica)
– Não. Só tem Diogo Vilela. (risos)
(Esse risinho me lembrou quando eu era zoado de Diogo Vilela na escola.)
– Tá. Obrigado.
Então resolvi ir embora mesmo. Mandei mais algumas mensagens para o editor, já bem chateado. Vazei.
Voltei, achei que podia tentar uma última vez.
Dessa vez, olhei para uma menina da produção e perguntei a ela quem mandava ali (já tava boladão) e ela apontou um rapaz. Fui até ele, e reparei ser um garoto que fez algumas aulas de teatro comigo no teatro O Tablado.
– Fala! Tudo bem? A menina disse que eu podia falar com você. Acho até que já fiz umas aulas de teatro contigo. É porque eu vim escrever sobre um filme, se chama Transe, e meu nome não está na lista, mas deveria estar.
– Pô, então… Já tá lotado o filme.
– Lotado?
– É, avisamos em todos os lugares, os filmes estão sujeitos a lotação.
(De verdade eu não entendi muito. Mas fingi que saquei.)
– Saquei.
– Deu mole, Brother.
(Aí eu fiquei bolado.)
– Qual mole?
– Chegou atrasado.
– Eu não cheguei atrasado. Faltam uns 20 minutos.
– É, mas lotou. Tem que chegar bem antes.
(Ele falou isso e ficou um tempo me olhando. Olhou pra minha blusa que tava bem amassada – não tive tempo de passar, fui esticando no caminho. Depois desses microssegundos suspensos, ele continuou.)
– Cara, mas vai abrir aí uma fila de espera. Se quiser entrar…tenta lá.
– Como faz?
– Vai nela moça ali e fala com ela.
(Sim, ela mesma.)
– Beleza, obrigado.
– De nada, Brother.
Sabia que era a última chance. Eu estava quase conseguindo. Agora era questão de honra mesmo. Fiquei meio cismado com o lance da blusa, então fui no banheiro e joguei umas gotículas de água em cima e fui passando a mão para esticar, costuma funcionar. Mais uma vez atravessei o mini-mar de gente e voltei na moça. Dessa vez fui de frente, de coluna ereta.
– Oi, voltei.
– Oi.
– Parece que vai ter uma lista de espera. Rola de entrar?
– Olha vou ter que ver aqui.
(Acho que minha blusa estava muito molhada. Talvez fosse melhor ter deixado amassada mesmo.)
– Tudo bem, então eu espero aqui?
(Só agora que eu fui olhar o relógio. Já tinham se passado quase meia hora do início do filme. Eu fiquei bem confuso. Vou entrar no meio da sessão? Vou ver só o final?
Vou ter que voltar outro dia para ver o início? Fiquei calculando.)
– Sim.
Nessa hora, ocorrem duas coisas ao mesmo tempo: a aglomeração aumentou e reparei que eram os protagonistas do filme tirando fotos. E outra: o editor do Vivente Andante apareceu milagrosamente na minha frente.
– Caramba! Te liguei muito.
– Eu sei cara, desculpa estava em outra sessão. Seu nome não está na lista?
– Não, mas também acho que já era.
– Peraí.
Ele foi chamar uma das assessoras e contou o meu caso. Ela então foi falar com a responsável pelo cinema. Só nesse momento que entendi que o filme nem tinha começado ainda, quase uma hora depois. Todos esperavam para entrar ainda, e a fila de espera era grande. Então, depois de aguardar mais uns 10 minutos a sala abriu, pessoas começaram a se enfileirar e fui atrás, quase entrando, um cara me barrou.
A assessora pediu para eu aguardasse mais um pouco porque iam abrir outra sala. Algum tempo depois, a outra sala abriu, fomos todos até lá. Eu já estava entregue, pra onde me levassem eu ia. Na porta, fui barrado novamente, estava cheia. Voltamos. Novamente na primeira sala, já tinha desistido e me peguei curtindo viver aquele vai e vem, no limbo. Até que alguém bate no meu ombro, era a senhora responsável pelo cinema, que falou “me segue”. Nem raciocinei e comecei a segui-la por uma porta pesada, depois uma escadaria e outra porta. Ela entra em uma salinha. Se fosse em outro lugar, eu acharia que iam pegar meus órgãos. Ela saiu com uma cadeira de madeira na mão, abriu outra porta e adivinhem: era a sala de cinema, a parte de cima, perto do projetor. Ela colocou a cadeira próximo ao extintor de incêndio e falou “se ajeita aí”. Já estava imaginando que em uma emergência, eu seria o responsável por apagar o fogo e salvar a todos. Talvez essa fosse a minha missão ali. Mas, muito simpática a senhora, mesmo. Poderia ser minha avó, cheguei a imaginar ela pensando “meu neto não vai ficar sem ver o filme”. Sentei e começou.
Aliás, veja o trailer e siga lendo sobre o filme:
Ó… Vou te falar… É um bom filme. Bonito. Bem dirigido, roteirizado e atuado. A estrutura narrativa tem uma ideia bem original, eles foram construindo o filme de acordo com os fatos políticos que iam se desenrolando durante a disputa eleitoral Haddad x Bolsonaro, então filmaram a trama no meio dos acontecimentos, o que mistura ficção com uma espécie de documentário. Dessa forma, é como se passasse na nossa frente um compacto bem selecionado dos últimos acontecimentos políticos e a ascensão do bolsonarismo no país, visto de…
“Não gosto do clima de festa.” – Mano Brown
…dentro da bolha da elite cultural carioca, nascida e criada na Zona Sul do Rio. Os protagonistas formam um trisal (Luisa Arraes, Johnny Massaro e Ravel Andrade) que passa todo enredo em busca de compreender a ascensão da onda bolsonarista. Eles vão aos protestos, discutem em bares, e vão traçando uma jornada que percorre as eleições, os debates e festas com performances artísticas e liberdade amorosa. O filme mostra o Transe em que essas pessoas vivem e não percebem o em torno. Se chocam com a ideia de um pobre e preto votar no Bolsonaro. “Mas como pode? Votarem nesse machista, racista, misógino?”. É uma saga interessante, entre tentar traçar um perfil astrológico dos candidatos e sessões com drogas alucinógenas para abrir o chacra do amor em nós. O filme consegue trazer uma ironia e, principalmente, rir de si mesmo. A questão que ficou é: até que ponto esse roteiro é uma sátira? Fiquei na dúvida, porque na forma do filme ele pouco conversaria com alguém de fora dessa bolha, o que me levou a pensar se ele não produz ainda mais esse afastamento de uma determinada classe social, ou melhor, da realidade – lá fora do Shopping da Gávea. Não me leve a mal, adoraria tomar uma cerveja com a diretora, e discutir isso. Mas fiquei com a impressão de que essa crítica faz um voo curto e retorna para o transe, sem perceber. O ponto de afastamento desse território é rápido e é feito por meio de clichês da esquerda mainstream, utilizando falas do Pastor Henrique Vieira ou idas a um culto evangélico para “entender essas pessoas”.
Talvez, também faça parte da manutenção deste Transe – da bolha – o escape, mas como forma de observar o “estranho”, estudar os seres “ignorantes” e compreender o que, no fundo, julgamos inferior a nós. Afinal, se você fica numa bolha, o oxigênio vai acabando, uma hora precisa dar uma respirada e voltar. O que nos lembra que a parede ficcional do filme é tão real quanto a documental. Infelizmente, não é só um filme.
Johnny Massaro parece um cara muito legal. Ele se emocionou muito no final, imagino que deve ter sido um processo bem intenso. Ele estava lá, sentado no chão, bem na minha frente e parecia reviver as cenas enquanto assistia.
Na saída, chegamos ao saguão, a assessora aparece do nosso lado e pergunta para meu colega “Ele é Bolsonaro?”, se direcionando a mim. “Porque se ele for, não vai gostar né?”
Gente boa também, ela foi muito solícita e educada. Mas eu retruquei “Tem que ser bolsonarista pra não gostar?”. Mentira, só pensei.
Eu gostei. Assistam.
Diogo Vianna é roteirista, diretor e ator.
Instagram: @diogoviann
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