Celebrando 25 anos de existência em ótima forma, Os Ciclomáticos Cia de Teatro estreiam o espetáculo inédito “Tudo faz sentido, mas é mera coincidência” no Espaço Cultural Sérgio Porto (RJ). Entre filmes, livros, séries e peças, esse espetáculo foi uma das melhores coisas que pude ver no ano de 2022. Ele é arte de tantas formas… Desde o figurino caprichado numa mescla de anos 70 (os pais) com uma estética de anime (os filhos) passando por canto e dança. A perfeição do visagismo salta aos olhos.
O programa fala que a peça traça um paralelo com o conceito da hermenêutica imaginal do filósofo Henry Corbin. Entretanto, as referências vão muito além disso. Pessoalmente, lembrei do livro “A Civilização do Espetáculo”, de Mario Vargas Llosa, pois, assim como essa obra literária, a peça apresenta um estudo dos tempos atuais e de nossa cultura de uma forma pontual. Porém, ao jogar verdades na face do espectador, faz com graça. Ou seja, é impossível não rir e se identificar em algum momento com a dependência da tecnologia que os personagens apresentam.
A dramaturgia inédita de Fabiola Rodrigues e Ribamar Ribeiro é muito boa, usando de ironia e sarcasmo na medida certa ao mostrar uma família cujo deus é a tecnologia e as aparências. Nada mais importa. O espectador sai feliz após a injeção de risadas, mas também reflexivo sobre os rumos da humanidade. Uma sociedade desorientada e refém das redes sociais e suas vertentes.
Família Addams Smartphone
A princípio, a família que protagoniza o espetáculo faz lembrar muito a famosa Família Addams, assustadores e cômicos ao mesmo tempo. Tal impressão aumenta no decorrer da peça, mas ultrapassa, atingindo uma psicopatia disforme e hilariante.
A direção de Ribamar Ribeiro impressiona pela condução da interação (e não interação) entre os personagens, tudo muito bem coreografado. Podemos perceber o cuidado com aqueles que mesmo não estando em primeiro plano participam expressivamente.
O elenco não deixa a dinamicidade cair em momento algum e mostra uma química surreal, quiçá, surrealista. Carla Meirelles, Fabiola Rodrigues, Getulio Nascimento, Julio Cesar Ferreira, Nivea Nascimento e Renato Neves formam um conjunto afiado e afinado (inclusive quando precisam cantar).
Por outro lado, volta o cão arrependido
O único personagem que parece ter alguma sanidade é exatamente o cachorro vivido com maestria ímpar por Getúlio Nascimento. Aquele que não é humano, é o mais sensível. Ele sofre com a falta de carinho e atenção. Em seguida, percebe seus familiares imersos e perdidos em seus smartphones. Somente ele sente o perigo que correm. A cena em que canta uma ópera é linda e forte. Um cão em profundo pesar pela decadência ao seu redor.
Enfim, a cultura do cancelamento, dos julgamentos instantâneos, o desaparecimento do dom de ouvir o próximo e das conexões genuínas, a prisão tecnológica, tudo isso está presente. Além disso, o personagem do pai é usado com acuidade para debochar de certas posições políticas.
“Tudo faz sentido, mas é mera coincidência” apresenta a tecnologia como religião, um deus onipresente que guia através dos algoritmos e poda nossa espontaneidade, e, acima de tudo, nossa liberdade.
Afinal, os Ciclomáticos Companhia de Teatro fazem a temporada de “Tudo faz sentido, mas é mera coincidência” de 02 a 24 de junho de 2022, às 20h no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Humaitá, Rio de Janeiro.
SERVIÇO:
“TUDO FAZ SENTIDO, MAS É MERA COINCIDÊNCIA
Temporada:
02 a 24 de junho
Horários:
Quartas, Quintas e Sextas – 20h
Local:
Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto
Rua Humaitá, 163 – Humaitá – Rio de Janeiro
Tel.: (21) 2535-3846
Ingressos:
R$ 30 (inteira) / R$ 15 (meia-entrada)
Duração: 70 minutos
Classificação: 12 anos
Gênero: Tragicomédia Contemporânea Tecnológica
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