Cinema
Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia | Crítica e Poesia
Publicado
3 anos atrásem

Subversão no gênero que rege Deus: é mulher e seu nome é Petúnia. Este filme constrói uma crítica ao modelo masculino de sociedade. O poder masculino é identificado com o Universal, no entanto, com a ação de Petúnia, observamos a subversão desse
conceito. Agora o Universal é o feminino, uma vez que Deus é mulher.
E que ação foi essa?
Há tempos, no mês de janeiro, existe um ritual de pegar a cruz em um rio. Acontece que em tal evento, apenas os homens competem. Metaforicamente, a ação de participar do ritual mantém o sistema funcionando. A interpretação é possível, ainda mais por causa do escândalo social que foi a ação de Petúnia de ter pulado no rio para pegar uma cruz de madeira. Pulou, no frio, na água fria e venceu de todos os homens que estavam na competição. Depois, pensei se o filme não era exaustivamente panfletário. Resolvi imaginar o grau de opressão daquela sociedade com o comportamento de Petúnia. Assim, cada ato da protagonista me pareceu o máximo possível de ousadia dentro de um conjunto possibilidades, o que de mais ousado poderia ser empreendido naquele momento e naquelas circunstâncias.
Isso me remeteu a Santo Anselmo em sua postulação filosófica sobre Deus, algo como sendo o pensamento máximo a respeito de algo em consonância com a realidade de materialização desse algo. ‘Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia‘. Suas ações e posturas o dizem. Mas penso que Deus foi humanizado, havia um corpo de mulher contra a correnteza. Sua humanidade dessacraliza o Deus ou o humaniza, algo que podemos vislumbrar no momento em que a cruz de madeira repousa no corpo despido da protagonista.
Macedônia, Bélgica, França, Croácia e Eslovênia
Com direção de Teona Strugar Mitevska, o longa contou com a produção de diversos países: Macedônia, Bélgica, França, Croácia e Eslovênia. Zorica Nusheva interpreta Petúnia, a mulher que se atira ao rio para resgatar uma cruz de madeira, prêmio de um ritual realizado no início do ano, na cidade de Strip, na Macedônia. Imagina uma sociedade em que padrões sociais fossem extremamente rígidos e que tudo estava em ordem por séculos e séculos e séculos, até que uma doida pulou no rio, num dia frio de doer o osso, em uma competição apenas para misó… rapazes, batizados e tementes a Deus e que estivessem ali para finalidades religiosas, e isso em um dia frio. O filme começa na atmosfera do quarto de Petúnia, a mãe dela leva o café na
cama.
Familiaridade
A diretora parece criar uma familiaridade com o espectadores: o por dentro da vida, dos anseios e da luta da protagonista. Acesso que só nós temos. Vamos adquirindo uma visão individualizada da protagonista, mas que é complemento de um sistema. A mãe a incentiva a mentir a idade, de 32 para 25 anos, porque ela seria considerada velha, inútil, imprestável, já que a prerrogativa do sistema para as mulheres é que sejam sempre jovens, ainda que envelhecer seja inexorável. E a mãe de Petúnia também é um complemento na sociedade, sua opinião está pautada em como o sistema espera que as mulheres sejam ou se comportem.
Não poderia ser também historiadora, deveria mentir quanto à sua própria formação, e é sutil essa transposição, já que o fato da protagonista ter uma formação evidencia um intelecto que também não é infantilizado, e isso também não serve muito aos
propósitos do sistema. Recebeu as recomendações da mãe e foi encontrar uma amiga, gerente de loja de roupas, a fim de encontrar um traje que fosse adequado para a entrevista. E essa amiga é um pedaço nesse sistema.
Fora do padrão
A entrevista ocorre em uma linha de montagem de confecção e tudo nessa atmosfera mostra um ordenamento repetitivo, a própria formulação do sistema de crenças que molda os seres e os torna parte desse maquinário, além disso, as mulheres ocupam a linha de montagem, enquanto o gerente as vigia de dentro de um escritório que é uma espécie de ilha panóptica envidraçada. Foi nessa “ilha” que ocorreu a entrevista para o cargo de secretária. Assédio moral, sexual, constrangimento. Petúnia foi informada que não poderia ter o emprego porque não estava dentro dos “padrões”: além de ter 32 anos, ser historiadora, ainda era gorda.
Saindo da entrevista, caminhou, viu-se em uma igreja, acompanhou a procissão e chegou ao local em que acontecia a competição. Depois da ação, da comoção, uma jornalista decide dar atenção ao acontecimento. Invasiva, tentando furos de reportagem, tentando de alguma forma divulgar essa ação, a jornalista também é um pedaço nesse sistema. Tem suas questões em relação à maternidade e à sua profissão e contar para o público a história de Petúnia e como foi que aconteceu de verdade era uma maneira de ver a si própria e de comunicar às mulheres que elas também passam por isso todos os dias.

O crime de Petúnia
O que Petúnia fez foi considerado crime, a cidade inteira procurava o seu paradeiro para saber se devolveria a cruz, para restituir a cruz, para a chamar de herege; a polícia a procurava, comentava-se na imprensa, o vídeo do momento em que pulou no rio se
espalhou nas redes sociais, foi xingada e amaldiçoada.
A própria mãe a condenou e insistia para que devolvesse a cruz. No meio de uma briga entre mãe e filha, a polícia chega para conduzir Petúnia e a cruz à delegacia. Tanto na casa quanto na delegacia, podemos verificar o quanto a questão da religiosidade permeia as condutas e as opiniões, levadas quase ao fanatismo. O filme mostra como o Estado não é leigo e que parece impossível ser cidadão/cidadã/cidadx sem ser religioso ou sê-lo independentemente de qualquer religião. Em casa, Petúnia não teve o apoio da mãe e na delegacia precisou enfrentar longas horas de hostilidade.
Ser Mulher
Observamos a intensa participação do padre no desenrolar dessas horas. Mas, consciente de que – ao menos na Letra o Estado é laico-, Petúnia se recusa a falar com ele. Interrogatórios e aquela movimentação e pressão não conseguiam convencer a protagonista a devolver a cruz. na delegacia Petúnia, apesar da pressão, mostrava-se tranquila. Também Petúnia não dá declarações à imprensa, somente os espectadores do filme sabem o que se passa no decorrer dessas negociações. Petúnia ficou detida por horas, ainda foi agredida pelos competidores quando foi liberada. Precisou voltar para o interior da delegacia. Alguns dos competidores foram detidos.
Se por um lado a firmeza de Petúnia desafiava o claro masculino, a exceção aparece por outro: um policial elogia a coragem de Petúnia e eles entrelaçam as mãos depois do episódio da agressão na porta da delegacia. O filme tece essa crítica entre os limites do Estado, que deveria ser laico, e a influência da Igreja na formação da cidadania daquele povo. Pensei em um soneto de Gilka Machado intitulado Ser Mulher, parte de Cristais Partidos, primeiro livro da poeta. A mulher encontrar um senhor vem a calhar para esta resenha porque o senhor ganha quase um contorno religioso e os preceitos sociais são aqueles edificados em torno dessa noção de senhor todo poderoso e que tem seu culto garantido por séculos, o crime de Petúnia foi ter pulado para a liberdade que a faz cidadã.
Tantálica Tristeza
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
A situação acontece na Macedônia, mas não é diferente do que acontece em outros lugares ao redor do mundo e o diálogo com o poema de Gilka demonstra a abrangência dessas situações e nos faz pensar em como podemos voar para a liberdade, nem que seja pular em um rio, em um dia frio, “apenas” para pegar uma cruz de madeira. Enfim, ‘Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia‘ não é dinâmico, mas às vezes nós, por conta dos pesados grilhões dos preceitos sociais, também não somos.
Trailer:
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Paula Albuquerque escreve entre passos e janelas, busca na educação, na arte, na cultura, nas ciências e no pensamento crítico, caminhos de transformação das diferentes realidades do país, assim como busca desenvolver tais habilidades em si, aprendendo sempre que possível. Cursou bacharelado e licenciatura em Letras, Mestrado em Letras - Ciência da Literatura e atualmente lê a bibliografia das disciplinas do Doutorado, na mesma área, em casa por causa do coronavírus.

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Publicado
4 dias atrásem
25 de maio de 2023Por
Rodrigo Adami
Após a Segunda Guerra Mundial muitos nazistas se refugiaram na América do Sul, algo que já foi abordado das mais diversas formas no cinema. Meu Vizinho Adolf, traz o tema novamente agora colocando um suposto Hitler como vizinho de um judeu que sofreu com o Holocausto. Um tema delicado que o diretor Leon Prudovsky consegue tratar bem e com um tom de humor mais discreto.
Mr. Polsky (David Hayman) perdeu toda sua amada família e decidiu viver isolado em uma velha casa na Argentina. Sua paz termina quando Mr. Herzog (Udo Kier), um alemão irritadiço, se muda para a casa ao lado. A aparência e o comportamento dele fazem com que Polsky desconfie que seja Adolf Hitler disfarçado.
Um clima triste mas que ainda nos faz rir
O personagem de Hayman passou anos evitando contato humano, sequer aprendeu espanhol, ele carrega uma dor que aperta o coração desde o início. Ainda, assim ele é um velho teimoso e também ranzinza do tipo que nos faz rir. Ao colocar na cabeça que seu vizinho é o próprio Führer, ele tenta alertar as autoridades sem sucesso.
Com isso Polsky começa a estudar a figura funesta para poder provar sua teoria. Todas as brigas e tentativas de invasão e espionagem são divertidas, não é aquele humor de fazer gargalhar e provavelmente não era essa a intenção do diretor. Conforme o filme avança, ambos vão criando uma amizade que obviamente é extremamente incômoda para Polsky. Mas ele começa a achar que estava errado até encontrar provas um pouco mais substanciais.
Um filme simples mas bem feito
Meu Vizinho Adolf não é um longa que exige cenários grandiosos, é tudo muito simples, são poucas locações. O foco são as atuações de David Hayman e Udo Kier que consegue cativar. Ambos os personagens carregam um passado cruel e toda a dor que eles sentem é revivida com força no final. A comédia fica um pouco de lado para falar de algo sério de forma acertada. Ao final temos um bom filme que consegue mostrar a crueldade do nazismo sem ter que colocar nenhuma cena pesada demais.
Estreando hoje nos cinemas brasileiros, Meu Vizinho Adolf é uma boa opção para quem quer fugir dos pipocões. Fique com o trailer:
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