Abril de 2008. Era um trabalho como qualquer outro e eu estava checando os últimos detalhes do equipamento que iria levar para uma missão fotográfica. A organização precisava ser perfeita, pois iria montar um estúdio fotográfico na butique art déco de um tradicionalíssimo fabricante de chocolates e dos famosos macarrons franceses. Essa empresa familiar existe desde 1913 e a quinta geração havia decidido inovar. Como, na França, a Páscoa é logo depois do Natal, é um momento em que as vendas de chocolates explodem, a família lançou um concurso para escolher clientes que seriam fotografados e a foto exposta na decoração da vitrine. Fiz alguns bons amigos durante essas seções de foto. Um deles foi o Laurent. Quando disse que a família inovava, não estava brincando, pois Laurent pediu para posar com roupas, cabelo e maquiagem femininos. E foi aceito.
Na base de minhas fotos de retrato há sempre uma boa conversa. A foto começa aí. Conversa vai, conversa vem, Laurent, sabendo que eu era fotógrafo de moda e se sentindo à vontade na sessão de fotos, contratou-me para fazer seu book. Ele desejava entrar no mercado da moda, enquanto modelo masculino, vestido com roupas femininas. Aceitei o desafio. Alguns dias depois, começamos um trabalho fotográfico que durou exatos 7 anos. O book se transformou em um trabalho autoral composto de 47 fotografias expostas em Paris e Londres, algumas das quais foram adquiridas por importantes colecionadores no Brasil e na França. Duas fotos fazem parte da coleção Joaquim Paiva que está sendo doada para o MAM, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
A fotografia artística com Laurent
Durante anos fiquei me perguntando porque comecei a retratar uma pessoa tão sofrida, com uma escolha de vida tão difícil. Isso porque, Laurent, que se vestia com roupas femininas, passou a tomar hormônios, deixou seu trabalho, adotou um nome feminino, operou-se e tem um companheiro. Posso afirmar que a energia que emanava dessas seções fotográficas nem sempre era fácil de segurar. Mas, quando trabalhamos com emoções, o psicológico, a arte, com o nosso interior e o interior de nosso sujeito, as respostas podem tardar. Mas chegam, certamente, um dia.
Hoje, anos depois dessa aventura, sei que nem sempre escolhemos o tema, o objeto, o sujeito de uma fotografia. Quem escolheu quem? Foi o Laurent que me escolheu, foi o tema que se impôs a mim (talvez já estivesse na minha cabeça sem que me desse conta), foram as emoções ligadas a essa história de vida que me sugaram? Certamente não foi um assunto fácil, uma senhora já quis me agredir em uma exposição, algumas pessoas desviam o olhar. E, no entanto, ali está um ser humano. Simples assim.
Conversando com colegas fotógrafos, dei-me conta que não sou o único a ser escolhido por um tema. O artista, depois, vai sendo levado e mais tarde tenta tomar, tanto quanto possível, o controle do processo, sem saber exatamente qual será seu desfecho. O caminho pode ser longo, pode ser exaustivo, demandar muita reflexão e aceitação. Então, para começar a construir uma obra é preciso primeiro escolher o tema? Parece que não é assim tão simples, não é? Então, porque segui nesse caminho?
Certezas?
Não tenho muitas certezas, mas imagino que, após ter fotografado mulheres belíssimas durante tantos anos, o desafio de captar a feminilidade de um homem que se transformava em mulher pouco a pouco, me cativou. Laurent não sabia agir como uma mulher, tentava mimetizar o que via nas revistas, parecia afetado, exagerava em uma feminilidade pouco natural. As primeiras fotos do book ficaram desesperadoramente feias. Eu não conseguia uma conexão, estava sendo vencido, não conseguia entrar na foto. Até que chamei uma amiga, produtora de moda, que, pouco a pouco, foi ensinando Laurent a se vestir como mulher, se comportar como uma mulher diante da câmera.
O segundo motivo veio depois: fiquei sensibilizado com o sofrimento de uma mulher presa, segundo suas próprias palavras, em um corpo de homem. Era um sofrimento como tantos outros, guerra, pobreza, depressão, desemprego… Mas, para que as fotos expressassem o que deveriam expressar eu precisava absorver essa energia. Muitas vezes chegava em casa com dor de cabeça, com peso na alma.
A história do meu personagem não cabe em uma caixa cronológica. Como David Lynch, preferi deixar ao expectador a liberdade de lidar com esse mistério ou ordenar a sequência de fotografias. Ainda que isso incomode algumas pessoas. Na sua criação artística, você já se deparou com uma situação como essa, ainda que em pequena escala? Pode me escrever se quiser dividir essa experiência.