Vinte e seis filmes (vinte e um internacionais), mais de mil salas de exibição e provavelmente centenas de infecções e mortes por Covid-19. Estes são os números do Festival De Volta Para o Cinema, idealizado pelo influencer Érico Borgo, que vai estrear em 15 dias.
Por mais que este Festival De Volta Para o Cinema tenha como objetivo jogar uma boia para a indústria do cinema, o que acontece é que essa boia vem revestida de chumbo. A larga expansão da pandemia no Brasil não para, e não temos uma previsão de melhora. Mesmo mesmo assim a classe empresária empurra uma reabertura precoce quando deveríamos estar num momento de lockdown completo. Enfim, o descaso dos realizadores com a vida dos funcionários dos cinemas, da equipe de limpeza e dos próprios clientes é desumano.
Lucro…
Enquanto isso, as produtoras bilionárias continuam a lucrar com streaming e abandonam o trabalhador que está no front de batalha. Não apoiam os cinemas que traziam o grosso dos seus lucros, não criaram um fundo de apoio aos trabalhadores da indústria que estão sem emprego, não fizeram doações expressivas para o apoio da população em geral que está sofrendo no meio da pandemia. Entretanto, os acionistas e diretores dos estúdios deitam e rolam em montanhas de dinheiro. Esperam que o consumidor sedento por entretenimento tire dinheiro do bolso para ver filmes requentados com um verniz moral de suporte àqueles que passam por necessidades e fome.
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Ao afirmar que enfiar 200 pessoas numa sala de cinema é o mesmo que pegar um ônibus lotado para ir ao trabalho podemos ver o objetivo de todo esse auê: grana. Uma campanha arrecadando dinheiro de grandes empresas e repassando para os mais afetado não lucraria. Estender a mão em ajuda dá a impressão que ainda estamos no meio do caos e não às portas da normalidade como todos querem que estejamos. Esse campo de distorção de realidade pode ser aprovado pela publicidade, mas ele é facilmente rachado quando se encontra com leitores atentos. Isso tudo não vai ajudar ninguém, só vai expor milhares de trabalhadores a um vírus mortal e tirar as contas do vermelho.
Estafa
Além de toda a questão social e ética de abrir cinemas no meio da maior crise sanitária dos últimos 100 anos, temos que nos deparar com uma seleção de blockbusters e “clássicos” que já se repetiram à estafa. Apenas cinco filmes nacionais, nenhum documentário, nenhum filme com escopo social, nenhum filme de fora das Américas, nenhum filme diferente. Enfim, uma curadoria genérica de filmes que vão lucrar ainda mais do que já lucraram.
Essa lista óbvia e batida do Festival De Volta Para o Cinema só mostra a (quase total) desconexão da produção do festival com a nossa realidade. Esse é o momento ideal de exibir outros filmes. Por exemplo, Uma Verdade Inconveniente (2006), 12 Anos de Escravidão (2013), Infiltrado na Klan (2018), Aquarius (2016), Terra em Transe (1967), Roma (2018), Carandiru (2003), Bacurau (2019) e tantos outros.
O que acontece é que nos vemos encalhado com esses cinco títulos:
Turma da Mônica – Laços (2019)
O Palhaço (2011)
Até que a Sorte nos Separe (2012)
Fala Sério, Mãe (2017)
Minha Mãe é uma Peça (2013)
O que eles têm em comum?
Pense nos produtores e distribuidores, temos dois colossais nomes inomináveis. Ambos com poder o suficiente para tirar esse texto acusador e jocoso do ar, ambos com dinheiro na banca para segurar cinco meses sem renda de exibições, com contatos e contratos do governo o suficiente para não precisar se coçar enquanto a pandemia se alonga.
Três desses títulos são uma cópia perfeita da comédia familiar banalizada a décadas com a sua falta absoluta de objetivo e fórmula imbecilizante que se tornou tão lucrativa. O público em geral menospreza o cinema nacional por esse engessamento criativo. Os filmes de maior sucesso saem das mesmas formas, tratam da vida da classe média que procura ascensão social e econômica, fetichizam e fazem graça dos pobres. Além disso, apresentam uma ideia romantizada da vida suburbana, retratam as classes mais ricas bidimensionalmente. Essa ultra simplificação da vida do cidadão comum é uma anedota das nossas próprias vidas. Teimamos em nos ver nas mesmas situações e problemas, por mais ridículos e inverossímeis que sejam. Enfim, essa farsa é o que nos apresentam como a vida real, e o público engole à seco sem um gole de pensamento crítico.
Realidade
Nas raras vezes em que um filme diferente estreia temos um sucesso estrondoso. Comparável aos maiores títulos exportados de Hollywood; todos lembramos dos barulho que Tropa de Elite, Ônibus 174 e Central do Brasil fizeram. Esses outros três filmes nos levam fitar as nossas realidades. Os três mostram uma história realista e crua que poderia facilmente ocorrer em qualquer grande cidade brasileira (mesmo sabendo que foram no Rio de Janeiro, mas isso não vem ao caso). Afinal, ao mostrar a nossa realidade bruta e autêntica podemos realmente ver como é o Brasil, como a dramaturgia se encaixa muito mais com o ethos conformado, maltratado, com síndrome de vira-lata, porém perseverante do brasileiro. Filmes classe-média que mostra famílias brancas enriquecendo por mágica não mostram o Brasil, mostram uma bela ilusão, como se ela fosse acessível para todos.