O que mais impressiona em Pequenas cartas obscenas é saber que o longa é baseado em uma história real! Quando aparece na tela que a história dessas mulheres estava há muito tempo guardada, ficamos surpresos porque é algo tão absurdo pra época que pensamos que só poderia ter saído da cabeça de um roteirista, mas não! A história estava escondida em jornais e a diretora Thea Sharrock resolveu trazer à tona como forma de honrar as mulheres revolucionárias da época.
Mas que história é essa? Tudo começa quando vimos Edith Swan, interpretada pela maravilhosa Olivia Colman, receber uma carta com conteúdo de baixo calão. Ficamos sabendo, então, que esta não é a primeira: há um tempo, a recatada e conservadora mulher recebe cartas com diversos xingamentos pesados, nada bonito para uma religiosa como ela. A suspeita da autoria dessas “cartas obscenas”, como diz o título, recai em Rose Gooding (Jessie Buckley), vizinha de Edith. Isso porque, além das duas terem tido uma briga bem audível por toda a vizinhança, Rose é mãe solteira de Nancy (Alisha Weir) e namora Bill (Malachi Kirby), que não é o pai da menina – e, além de tudo, é negro, em uma cidadezinha muito branca da Inglaterra.
Além disso, a irlandesa não é nem um pouco recatada ou tradicional, tem atitudes que não são consideradas de uma dama e fala tudo o que pensa sem medo algum. Ao longo do filme, vemos uma cidade inteira contra Rose e defendendo Edith, até mesmo a polícia. Quer dizer, quase todos, já que a “polícia mulher” Gladys Moss (Anjana Vasan) não parece estar tão certa assim da culpa de Rose.

Por que assistir?
Eu poderia somente dizer que esse filme se resume a: o mundo tem medo de mulheres livres. E poderia dizer também que reflete com clareza a necessidade da luta das mulheres até hoje, já que muitas situações presentes no longa infelizmente acontecem até hoje, 100 anos depois de quando os eventos são retratados. Poderia também falar que vale a pena assistir por apresentar uma reflexão profunda sobre a importância da luta das mulheres por seus direitos, por coisas básicas como poderem falar sem serem duvidadas. Ou simplesmente dizer que é uma crítica ao funcionamento da sociedade, como as hierarquias são feitas a partir de gênero, raça e poder financeiro, além de uma ode às mulheres que ousam fazer diferentes, mesmo quando todo mundo diz que elas são loucas ou estão sempre erradas.
Mas não vou dizer isso. Bem, não só isso. Vou falar também que é um filme que emociona. Que atinge nosso funcionamento e nosso pensamento, principalmente se você é uma mulher que luta, que ousa, que não foge, que percebe o funcionamento do patriarcado, que luta sem cansar por você mesma e pelas outras mulheres. Vou dizer que é um filme que dá força, que impulsiona, que diz “segue em frente, as coisas vão melhorar”. Porque elas melhoraram. Podem não estar do jeito que gostaríamos ainda, mas melhoraram. Porque se antes éramos exceção, agora podemos até fazer um filme sobre isso.

Mulheres incríveis
Mas, claro, não é um filme só para mulheres ou para pessoas que se importam com sua luta. Além de tudo isso, Pequenas cartas obscenas ainda é envolvente e com atuações deslumbrantes.
Falar que Olivia Colman impressiona chega a ser redundante. Todos nós sabemos que a atriz consegue interpretar o papel que quiser. Mas observá-la interpretar as minúcias de Edith, vê-la intercalar entre uma opressão total de expressão e momentos mais expansivos é assustadoramente genial. Mais uma vez, a atriz mostra toda a sua versatilidade em um papel que por vezes sentimos pena, por vezes sentimos raiva.
Jessie Buckley, no papel da ousada Rose, é uma lufada de energia e otimismo. É interessante ver como ela consegue ser tão forte em um invólucro tão pequeno e delicado, o que torna a personagem – e a escolha da atriz – ainda mais interessante.

Já a pouco conhecida Anjana Vasar, que dá vida à policial Moss, traz uma sutileza em sua interpretação que de forma alguma mostra o tamanho de sua personagem. A timidez de Gladys intriga o espectador e, talvez, ela seja a personagem mais interessante da trama. Isso porque sua personalidade não está entregue de cara, e quem assiste descobre – diria até que juto com a própria personagem – quem ela realmente é. Uma construção muito sábia de personagem, assim como acontece com as outras duas.
Ademais, os personagens secundários também são altamente intrigantes. Cada um tem sua característica muito própria, como nas comédias antigas. Aliás, Little Wicked Letters (no original) é uma mistura perfeita de comédia e suspense, já que também remete muito às histórias policiais de Agatha Christie. Contudo, muito melhor do que qualquer adaptação já feita de seus livros.
União
Por fim, uma das características mais acertadas do filme é mostrar a cumplicidade entre mulheres. Algo que vem sendo cada vez mais acentuado em produções audiovisuais (ainda bem) é mostrar ao público que, em vez da rivalidade que antes era imposta e encorajada, o melhor é a união. Só assim vamos em frente.
Além disso, o filme deixa bem claro que ninguém é só uma coisa e que é preciso se enxergar através das aparências.
Por falar em aparência, é muito agradável ver atores mais parecidos com pessoas reais. Pessoalmente, uma das coisas que mais incomodam em filmes dos Estados Unidos, muito hollywoodianos, é a “perfeição”, além da padronização de todos os corpos. Apesar de não haver diversidade em raça (o que é normal, dada a época e onde se passa a história), os filmes ingleses, geralmente, apresentam um elenco mais “gente como a gente”. Esse fato facilita ao público a identificação com os personagens. E Pequenas cartas obscenas gera bastante identificação. Principalmente se você for mulher. Assista e se delicie.
Pequenas cartas obscenas já está em cartaz nos cinemas do Brasil.
Ficha Técnica
Pequenas cartas obscenas (Little wicked letters)
Direção: Thea Sharrock
Roteiro: Jonny Sweet
Elenco: Oliva Colman, Jessie Buckley, Anjana Vasan, Joanna Scanlan, Gemma Jones, Malachi Kirby, Lolly Adefope, Eileen Atkins, Timothy Spall, Hugh Skinner, Paul Chahidi, Jason Watkins, Alisha Weir
Produtores: Graham Broadbent, Pete Czernin, Ed Sinclair, Olivia Colman, Jo Wallett
Produção Executiva: Anna Marsh, Ron Halpern, Joe Naftalin, Ollie Madden, Daniel Battsek, Farhana Bhula, Diarmuid McKeown, Ben Knight, Tom Carver, Jonny Sweet, Simon Bird
Coprodução: Emma Mager
Distribuição: Sony Pictures Brasil.
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