Wim Wenders, Desperado (Eric Fiedler, Campino, 2020), em uma primeira impressão, parece que será um daqueles documentários onde se fará um resumo da obra do objeto de estudo. Aqui, no caso, obviamente, Wim Wenders. Isso em conjunto com uma série de outros artistas que trabalharam com ele, ou foram inspirados por ele, comentando a sua importância, sem dar margens para compor uma figura falível.
E por um certo tempo assim o documentário é. Remontando momentos memoráveis de diversas obras, como Paris, Texas, ou Asas do desejo, ou até mesmo de alguns documentários como Pina e O Sal da Terra. Aparentemente a humanidade por trás do artista seria ofuscada pela sua própria obra. Seja andando no mesmo deserto de Paris, Texas, ou uma dança de improviso em lugar público como Pina. Ou talvez um depoimento através de um reflexo de vidro de um quadro que guarda uma fotografia, como em O Sal da Terra, ou vagando observando a vida acontecer em uma biblioteca como em Asas do desejo, Wim Wenders, neste documentário passa a ser um personagem de suas obras, encarnando fielmente as cenas, revelando mais sobre a obra do que sobre si.
Talvez não porque Wim Wenders evite se abrir ao falar de suas obras, mas talvez porque sua vida e seu modo de ver a vida se confundem com os seus enredos e seu olhar através das câmeras. E é notável que o tempo inteiro Wenders se revela como humano-artista. Aliás, a primeira impressão que o filme dá se dissipa com o passar do tempo, e, assim como em seus filmes, pegamos uma estrada sem conhecer ainda o caminho, que se descobre durante a viagem.
Gatilho
Wenders gosta de fazer seus filmes sem saber para onde rumam. Basta uma ideia inicial, um gatilho, um carro que ligam, um deserto vazio. Ele comenta que fazer um filme ou contar uma história sabendo de seu fim é trapacear. Um bom início de jornada resulta, muitas vezes, em um destino fabuloso. E o início de muitas jornadas cinematográficas de Wenders se dá em descobrir as locações, vagar por possíveis destinos. Como ele mesmo diz, tirar fotografias daqueles lugares até perder o medo das cores que sorriem pra você. E Wenders, que cresceu em uma exagerada recepção de cultura norte-americana proporcionada pelo pós-guerra, se arrisca saindo de sua terra natal para fazer filmes nos Estados Unidos, acreditando que o seu método é viável por lá.
Há um time talentoso no elenco de entrevistados falando suas impressões sobre Wenders, como Willem Dafoe, Patti Smith, Francis Ford Coppola, Werner Herzog.
Em depoimentos cheios de paixão e elogiosos, temos Dafoe falando da composição de imagem de Wenders, onde um céu tomando a imagem em contraposição com a aridez do deserto diz mais do que muitas palavras. Wenders é um poeta da imagem. Além disso, Herzog, que, inclusive, abre o filme sugerindo aos jovens que, se querem fazer cinema, que o façam como Wenders fez e faz. Mas destaco aqui dois personagens importantes dentre os entrevistados: Francis Ford Coppola e Donata Wenders, esposa de Wim Wenders. E os destaco porque são os mais reveladores do lado de Wenders que se arrisca em nome de sua arte, e, consequentemente, talvez os que mais o revelam como ser humano diante dos nossos olhos.
Coppola
Coppola foi responsável pela produção do filme Hammett (1982). O roteiro já havia sido aprovado pela produção, as filmagens já estavam ocorrendo, porém, próximo ao fim das filmagens, Coppola descobre que o filme pelo qual ele aprovou o roteiro, não existe. Em seu lugar, há um filme sendo feito conforme o instinto, a sensibilidade e a vontade de Wenders no set de filmagem.
Totalmente longe do objetivo inicial do que seria o filme, Coppola, que ironicamente trabalhou de forma muito parecida em seu filme Apocalypse Now (1979) (chegando, inclusive, a ser premiado em Cannes como um projeto não-finalizado), desaprova
o método de Wim Wenders e tenta o “encaixotar” no método hollywoodiano de se fazer cinema. Com cortes em cenas, com equipe de roteiristas tentando reescrever o filme, Wenders encerra seu filme frustrado criativamente e desconta essa frustração em seu filme seguinte, O estado das coisas (1985). Neste filme, Wenders narra sobre um diretor com problemas em sua produção, e diversos momentos do filme aparecem no documentário, interligando a história de Coppola, os depoimentos de Wenders, as cenas de O estado das coisas, e Coppola se defendendo que ele não é o produtor que surge neste filme.
Donata
E Donata Wenders, que está casada com ele há 27 anos, revela que Wim Wenders vive a vida em seu risco máximo. Eles vivem em um conforto de alguém com uma boa condição financeira. Porém, sempre com pouco, no limite, pois Wim arrisca sempre o dinheiro que tem e a energia que possui em seu próximo projeto. Mergulhando de cabeça constantemente no desconhecido que seus próprios filmes são, Wenders abre mão de uma vida confortável para que possa ser o autêntico artista que é seu único modo de trabalhar. Se não há mais produtores interessados em trabalhar do seu jeito, com o roteiro dos filmes sendo um pontapé inicial e não um guia completo, então Wenders ruma a um estilo que o permite ter surpresas enquanto trabalha: o documentário. Embora ainda trabalhe com ficção, é no documentário (principalmente nos últimos anos) que Wenders ainda se permite explorar o desconhecido.
Do seu método de produção vem seu apelido, título do documentário, “Desperado”. A saber, tem o sentido daquele que se joga do céu, o que mergulha de cabeça, aquele que se arrisca ao máximo. Como se fosse ele mesmo seu personagem de Asas do desejo.
Por fim, veja o trailer:
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