O escritor, professor e divulgador da literatura de cordel, Marco Haurélio, desenvolve, desde 2005, um trabalho de recolha, catalogação, classificação e difusão de gêneros da tradição oral brasileira. Porém, com destaque para contos e cantos populares. Ele tem mais de 50 livros publicados, a maior parte dedicada ao cordel. Pela SESI-SP Editora, lançou os livros “Tristão e Isolda em cordel“, “A lenda do Batatão” e “Uagadu. O Vivente Andante realizou uma entrevista exclusiva com o autor sobre seu último lançamento, a leitura no Brasil e cordel, claro. Confira:
Vivente Andante: Marco Haurélio, você tem um extenso trabalho de pesquisa e divulgação do cordel. Qual a importância desse gênero literário e por que o escolheu?
Marco Haurélio: Quando criança, antes mesmo de entrar numa escola, eu já conhecia o cordel, principalmente por causa de minha avó paterna, Luzia, e de meu pai, Valdi. Conheci o cordel antes dos quadrinhos, por exemplo, e, quando aprendi a ler, tentei escrever, ou melhor, versar uma história. Sendo assim, no meu caso, o cordel é uma presença anímica. Acho que ele sempre esteve comigo.
VA: Lemos seu livro “Tristão e Isolda em Cordel” e ficamos maravilhados não só por todo o capricho da belíssima edição da SESI-SP Editora que favorece a epicidade da história, mas pela forma como condensou de maneira que a leitura flui lindamente. Como foi realizar esse trabalho?
Marco Haurélio: Pense num texto que deu trabalho! Mas, apesar disso, a história estava internalizada e a escrita vinha muito facilmente. Li várias traduções e adaptações, incluindo uma de Afrânio Coutinho, na qual Isolda é chamada Iseu, como no francês. Caso eu optasse por essa grafia, seria um caminho mais fácil, pois as rimas em “eu” dobram muitas esquinas. Mas, por conta da ópera de Richard Wagner, o nome Isolda hoje é o que predomina, até mesmo em traduções do francês. Precisei padronizar ainda o nome de outras personagens e tentar contar toda a história, sem atropelo e sem prejuízo em termos de qualidade poética.
VA: Por que escolheu esse mito da cultura céltica? Por seu poder de convergência, como cita na introdução do livro?
Marco Haurélio: Sim, sem dúvida. A história de Tristão e Isolda está, ao mesmo tempo, no ciclo da Távola Redonda e fora dele, por vezes servindo de modelo para a saga de Lancelote e Guinevere. Há elementos de mitos gregos, como o de Teseu, e motivos do conto popular, ainda vivos na tradição oral brasileira, como o episódio do “juramento ambíguo”, que tem uma pegada mais cômica que o resto da história. Li, pela primeira vez, a história ainda adolescente, e essa primeira leitura já despertara em mim a vontade de recontá-la em cordel.
VA: O Brasil valoriza a própria cultura e, mais especificamente, o Cordel? Por quê?
Marco Haurélio: O Brasil é, por assim dizer, uma convenção que usamos para designar o conjunto dos que habitam esta terra que os invasores europeus um dia chamaram de Santa Cruz. Por sua extensão territorial, o Brasil é um país rico em manifestações culturais e em contrastes, e essa riqueza nasce também de suas muitas contradições. O cordel nasceu no sertão, circulando inicialmente em manuscritos ou pela difusão oral, depois foi levado a prelos rudimentares do Recife, principalmente graças a Leandro Gomes de Barros (1865-1918).
O Brasil de baixo, excluído, marginalizado, esquecido, sempre valorizou o cordel e dele se serviu para acessar um grande manancial de histórias.
Esse mesmo Brasil tem sucumbido, hoje, às bugigangas de consumo rápido e descartável produzidas ou promovidas pela mídia. Ainda assim, concorrendo com a indústria do entretenimento, enfrentando o preconceito de uma autoproclamada elite cultural, o cordel atravessou todo o século XX e adentrou o XXI, dinamizado e aberto a novas temáticas, sem perder contado com sua base cultural e histórica. Tristão e Isolda em cordel é fruto dessa caminhada.
VA: Como aumentar a frequência de leitura do povo brasileiro?
Marco Haurélio: Sinceramente, não sei. Nos últimos anos a falta de políticas voltadas à promoção da leitura tem feito estragos consideráveis. O que sei é que tenho tentado, por meio de cursos e grupos de estudo, abordando temas os mais diversos, que vão da literatura de cordel aos contos de fadas e à mitologia comparada, despertar o interesse pela leitura e pela pesquisa, sugerindo, sempre que possível, obras pouco difundidas em vários campos do saber. É muito pouco, estou certo disso, mas há muita gente boa e projetos dignos de aplauso sendo realizados. Livro não é um “amontoado de muita coisa escrita”. Um livro aberto é uma janela aberta a caminho da construção da cidadania plena.
VA: A poesia parece ganhar um novo espaço a partir das redes sociais, como vê esse movimento?
Marco Haurélio: As redes sociais são, quase sempre, um campo minado, embora aparentem ser ambientes democráticos e abertos a todo e qualquer debate. Contudo, vejo com muito otimismo o surgimento de novas gerações de artistas ligados não só à poesia, mas também a outros fazeres e saberes. A rede social abarca os dois sentidos da palavra teia: pode ser uma teia de relações, ampliando e construindo diálogos e discussões, ou uma teia de aranha.
VA: Marco Haurélio, o que é arte?
Marco Haurélio: Vou complementar a pergunta anterior e fechar com uma estrofe que fiz, numa modalidade da cantoria nordestina (os oito pés a quadrão), escrita durante uma peleja que travei com o escritor, tradutor e compositor Braulio Tavares, no Facebook. Ou seja, uma rede social da qual nos servimos para difundir a poesia popular. O tema, em certo momento da peleja, foi justamente “o que vinha a ser a arte”. Postarei duas estrofes, uma de minha autoria e outra do Braulio, que dão a dimensão de que arte, sendo algo tão singular, mas que, ao mesmo tempo, abraça tantas visões de mundo, não pode ser restrita a uma definição cartesiana:
Arte é galgar infinitos,
ouvir o papel dar gritos,
rir do tombo de Carlitos
e se despir da razão;
mergulhar no inconsciente,
de lá trazer a semente
que fustiga a insana gente
nos oito pés a quadrão.
As louras de Buñuel
a Sistina de Miguel
anjinhos de Rafael
nudez de revelação;
arte de enfrentar o medo
arte de quebrar segredo
e a arte de dar o dedo
nos oito pés a quadrão.