“Já pintou o verão, calor no coração, a festa vai começar”. Surge o hino “Baianidade Nagô” na voz de Ivete Sangalo, atrelado a imagens arquivísticas belíssimas de blocos, trios e multidões pelas ruas soteropolitanas. É o documentário Axé – Canto do Povo de Um Lugar fazendo um convite aos entusiastas de um dos gêneros musicais mais populares do Brasil: o axé music. A saber, lançado em 2017, o longa teve uma recepção tímida de público. Porém, entrou no catálogo da Netflix este mês e, em pouco tempo, virou assunto nas redes sociais. Assim, através da linha cronológica do documentário, acompanhamos o nascimento, a ascensão e o declínio do ritmo musical que encantou dezenas de pessoas nos carnavais de Salvador e ganhou o mundo.
O documentário, dirigido e roteirizado por Chico Kertész, abasteceu-se de grandes nomes da MPB como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Daniela Mercury, Carlinhos Brown, dentre outros, juntamente com importantes produtores musicais, como Wesley Rangel, radialistas, jornalistas e compositores. Tudo isso para apresentar as origens e os bastidores do axé music ao espectador. Desse modo, a primeira metade do longa volta-se para o nascimento do axé, oriundo das ruas, como música feita por grupos negros e para o povo, através de blocos consagrados como o Olodum e o Ilê Aiyê.
Estruturas abaladas
Aliás, ainda que haja uma falta de consenso entre os artistas sobre a paternidade do axé, em contrapartida, há um apontamento ao filho ser Luis Caldas, artista que deu mais visibilidade ao gênero soteropolitano levando-o à TV e às rádios nos idos dos anos oitenta. Assim, bandas como a Reflexu’s, Beijo, Bamdamel, Cheiro de Amor, e etc. ganharam notoriedade na indústria fonográfica, fazendo o axé expandir seu território e conquistando o Brasil. Daniela Mercury ganha destaque por ter trazido sua identidade ao gênero e torná-lo mais “pop”. Inclusive, mostra sua popularidade com o registro de uma apresentação em 1992 no Vão do MASP. Naquele dia, ela literalmente abalou as estruturas do local, tendo seu show interrompido para evitar acidentes.
Ainda por cima, acompanhamos o surgimento dos trios elétricos. Além disso, as contribuições musicais de cada artista ao gênero musical e a importância dos blocos de rua. Contudo, Axé – Canto do Povo de Um Lugar peca em não aprofundar-se na elitização das cordas. Entretanto, tudo é equilibrado com imagens inebriantes da alegria do povão pelas ruas de Salvador. Em seguida, a segunda metade do documentário soa como uma panfletagem de artistas consagrados pelo ritmo musical, como Chiclete com Banana, Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Asa de Águia, dentre outros. Por fim, aponta Saulo como o possível futuro do axé music.
Indústria fonográfica
Ainda que sutil, há uma crítica ao empresariado predatório que assumiu as rédeas do gênero quando esse tornou-se bastante rentável e mais radiofônico. Marcia Freire, ex-integrante da banda Cheiro de Amor, é um exemplo citado de passada de perna. Ela teve sua música impedida de tocar nas rádios por determinado empresário, refletindo no alavancamento de sua carreira solo.
Desse modo, havia sabotagem e jabá nas rádios. Elas privilegiavam alguns artistas em detrimento do apagamento de outros, segundo a fala de radialistas e produtores. Há de ressaltar também a falta de senso de comunidade dentro do axé. Não havia parcerias entre artistas, como acontecia nos outros gêneros musicais. Tal fato dificultava a inserção de caras novas ao cenário. Quando confrontada, Ivete Sangalo é a única artista que demonstra surpresa, dizendo: “Alguém lhe disse que não existe união? Eu não estou sabendo disso! Pelo menos comigo, isso nunca aconteceu!”. Em contrapartida, o cantor Netinho dispara: “Era cada um por si e Deus pelo axé”.
Embranquecimento do gênero
Mesmo o axé tendo suas raízes no movimento negro e sendo cria das ruas, a maioria dos artistas que protagonizaram o ritmo musical foram – e são – artistas brancos. Isso demonstra um embranquecimento mercadológico do gênero. Ainda que haja uma crítica sutil ao racismo, presente na fala de João Jorge, que afirma: “(N)a estética negra em Salvador não era possível você ter cabelos longos, não era possível você ser… ter barbas, bigodes e barbicha e não era possível você ter nenhum indicativo de que você era descendente de africanos”. Posteriormente, Marciolínio fala de repressão policial racista. Infelizmente, o documentário erra feio em abrilhantar o time branco e dar pouco espaço aos artistas negros que foram pilares do movimento. Desse modo, nomes como Margareth Menezes, Araketu, Tonho Matéria, Marciolínio, Ilê Aiyê, dentre tantos outros, foram ofuscados na produção audiovisual, tendo pouco destaque.
Enfim, Axé – Canto do Povo de Um Lugar encontra-se disponível no catálogo da Netflix.