Lenita, documentário do diretor Dácio Pinheiro, estreou no dia 27 na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O filme é sobre a vida de Lenita Perroy, pioneira na fotografia e moda da década de 1960 e uma das poucas diretoras do cinema brasileiro dos anos 1970. Contudo, Lenita abandonou a carreira artística para viver reclusa, se dedicando à criação de cavalos árabes. A ex-fotógrafa, ex-diretora e sempre amante de cavalos faleceu em 2018.
Dácio Pinheiro, diretor do longa e fundador da produtora independente Gore Filmes, deu uma entrevista exclusiva para o Vivente Andante e contou um pouquinho sobre como foi o processo de produção do documentário. Com muita leveza e honestidade, falou por que decidiu fazer um filme sobre Lenita. Disse, também, como foi o contato com essa mulher tão destemida, que não tinha medo de ser diferente e colocar a mão na massa em lugares que estavam somente destinados aos homens na época.
A saber, a próxima exibição de Lenita será no dia 30 de outubro (segunda-feira), às 16h. Acontecerá no Reserva Cultural (Av. Paulista, 900 – Bela Vista), sala 1.
Livia Brazil: Por que você quis contar a história da Lenita? Como foi encontrá-la? Foi difícil fazê-la participar do filme? Se puder contar um pouquinho do processo…
Dácio Pinheiro: Tudo começou quando eu estava andando na feira do Bixiga e encontrei um baralho com umas cartas grandes e nas cartas tinham fotos de celebridades. Carlos Imperial era o coringa, tinham fotos do artista Olivier Perroy, da Cinira Arruda. E eu fiquei muito curioso porque achei o baralho muito bonito e muito bem-feito, muito bem fotografado. E tinha o crédito dessa fotógrafa, Lenita Perroy. Fiquei um pouco obcecado em tentar achar o paradeiro dela porque ninguém sabia onde ela estava. Isso foi no começo dos anos 2000. Na época, eu comecei a correr atrás de uns contatos para ver onde ela estava e descobri que ela tinha abandonado a carreira artística e virado uma grande criadora de cavalo árabe.
Foi bem difícil encontrá-la. No começo dos anos 2000, não tinha celular e internet, não era tão fácil o contato. Então eu tive que ligar de telefone fixo, falar com a assistente dela, tentar convencer e tudo. Depois de um tempo, eu consegui que ela me recebesse no haras dela em Sorocaba. Aí ela me deu umas latas de filme, mostrou os negativos e algumas fotos da época em que era fotógrafa de moda nos anos 60. Mas ela não quis me dar entrevista, foi bem restrita. Mas eu fiquei com aquelas latas de filme.
Passaram-se 15 anos e eu consegui ver os filmes depois de um tempo, porque não é tão fácil ver filme 16 mm. Aí resolvi ir atrás dela de novo em 2016 e ela me recebeu novamente. Mostrei o filme dela, ela ficou superfeliz. Aí eu propus fazer o documentário e ela topou. Foi aí que comecei a contar a história. E, infelizmente, em 2018 ela veio a falecer.
O meu interesse nessa história foi mais para revelar a história de uma fotógrafa que fez muita coisa nos anos 60 e 70 e depois desapareceu. Principalmente a história de que ela foi uma das poucas cineastas a dirigir filmes no começo dos anos 1970 e eu fiquei muito curioso com essa história de ela ter abandonado a carreira artística e viver reclusa. Esse foi um dos motivos que me motivou a contar essa história, essa coisa meio misteriosa de “Onde ela tá?”.
LB: Lenita foi uma fotógrafa e diretora muito influente, conhecida por pessoas como Vera Fischer, Gloria Kalil e Ronnie Von, só para citar alguns. Apesar disso, não é muito conhecida pelo público em geral. Qual você acha ser o motivo?
DP: Acho que o grande motivo foi esse abandono dela da carreira. Porque nesse mundo da moda e da arte em geral, se você não está em evidência, você desaparece. Artistas para artistas que já não estão mais aqui, às vezes, existe um motivo para a obra a ficar viva e a Lenita não. A Lenita abandonou a carreira, se retirou, e boa parte do material ela jogou fora, não queria mais contato com esse mundo do passado.
Para ela, o novo mundo, o mundo do cavalo, era o mundo ideal. Ela não queria mais saber. Tanto que quando amigos artistas iam visita-la no interior, ela não queria receber. Ela recebia, mas acabou se distanciando muito das pessoas e as pessoas acabaram não indo mais. Muitas dessas pessoas nunca mais a viram depois que ela desapareceu. Eles tiveram contato intenso no final dos anos 60, começo dos anos 70, mas depois ela se retirou, então foi um pouco isso.
LB: Para complementar a pergunta anterior, há um grande apagamento das mulheres ao longo da história em diversas áreas. No caso de Lenita, você acredita que houve uma falta de compreensão do público sobre seu trabalho, principalmente pelo fato de ser mulher?
DP: Ela é uma pessoa que gostava muito de concorrer com os homens. Ela foi fazer os primeiros filmes porque ela não queria ficar atrás do Olivier, que era o ex-marido dela. Então ela foi atrás. Eu acho que muito disso também leva a esse caminho de ter feito o primeiro filme dela com o roteiro inspirado em um livro e o roteiro também sendo de Gilda de Abreu, que foi uma das primeiras mulheres cineastas. Ela tinha esse pensamento, esse pioneirismo.
Ao mesmo tempo, em uma das entrevistas que a gente fez, ela falava que não era feminista, o que é uma contradição. Porque ela fez muitas coisas que eram coisas que homens faziam na época. Por exemplo, em 1961, ela se formou engenheira elétrica na Politécnica. Ela tentou seguir carreira, mas não conseguiu porque não davam espaço para ela. Aí ela foi para fotografia. E ela se achou na fotografia. Acho que era uma época muito difícil porque o cinema era muito dominado por diretores homens. Hoje em dia, isso mudou bastante, para melhor. Mas, ao mesmo tempo, a Lenita foi uma pioneira como outras que fizeram filme nessa época. Mas eu não acho que ela foi apagada pelo fato de ser mulher, eu acho que foi mais pelo fato de ela ter se retirado completamente da cena. Então ela acabou sendo ofuscada pelo mundo que foi virando.
LB: Uma pergunta um pouco mais técnica. O início do filme tem um ar um pouco sombrio, que lembra um filme de terror. Essa escolha foi pensada? Se sim, qual o motivo?
DP: Não foi tanto uma intenção de terror, mas foi mais essa coisa de mistério, dessa coisa meio misteriosa, meio mística. Esse portão, essas estátuas, essas coisas meio de espelhos, esses jardins descuidados que ela gostava tanto. Isso me remete muito a esse universo desse horror clássico. Acho que é mais horror clássico do que “terrorzão”. Nesse início da minha descoberta do mistério, do paradeiro dela. “Onde está essa mulher?” Aquele universo todo meio misterioso. Então foi um pouco mais por esse motivo que ficou um pouco mais sombrio. Tanto que quisemos deixar um pouco em preto e branco para dar ainda mais esse clima de horror clássico, uma coisa meio Hammer, desses filmes que tinham do Edgar Allan Poe, anos 1960. Foi um pouco essa a referência.
LB: Sua produtora, a Gore Films, costuma produzir obras audiovisuais que mostram a cultura queer. Você enxerga algum paralelo entre a cultura queer e o trabalho de Lenita Perroy?
DP: A Gore é uma produtora que não só faz cultura queer, mas também esse resgate de memória dentro desse universo pop de cinema, música e moda. Acho que tem algo muito forte nisso. Eu sempre fiz filmes assim, inclusive o filme da Cláudia Wonder, sobre uma travesti que também foi precursora nos anos 1980 na luta pelos direitos LGBTs. A Lenita tem um universo mais feminino, uma coisa mais da mulher enfrentando esse universo masculino.
Mas, ao mesmo tempo, a Lenita tinha um estilo muito extravagante. Ela usava (nas fotos) perucas muito exageradas, e as bonecas também tinha essa construção de um universo, muito antes de existir a drag, tinha esse universo de drag queen. Tanto que agora estou tendo feedback de algumas drag queens que estão obcecadas com os cabelos que a Lenita fazia. Então acho que essa coisa queer também vem um pouco desse sentido. Acho que não é tão queer, mas dialoga com esse universo cultural e artístico da moda e desse universo que interessa muito ao público queer também. Do glamour, da moda. Mas, ao mesmo tempo, Então acho que isso linka um pouco a esse universo que está ligado à proposta da nossa produtora.
LB: Um dos entrevistados diz que era difícil definir Lenita. Você conseguiria fazê-lo?
DP: É difícil defini-la. Ela não era muito aberta, vivia nesse mundo meio fechado, em função desse cavalo, dessa busca por essa beleza que ela imaginava, da perfeição desse animal. Então eu acho que, como o Olivier fala, ela era uma pessoa muito difícil de conviver porque tudo era muito dentro do universo dela. Ela criava o mundo dela específico e você tinha que viver dentro daquele mundo. Então acho que é um pouco esse caminho. Acho um pouco difícil também definir. Eu tento defini-la um pouco no filme.
LB: E seu filme, você conseguiria defini-lo? Qual mensagem você quer passar?
DP: Eu nunca pensei em uma mensagem exatamente, mas meu desejo com esse filme era revelar a vida e a obra de uma mulher que, para mim, foi admirável. Além de ela ter se proposto a fazer esse trabalho que era uma visão muito específica, ela tinha essa coisa muito bem definida de como ela imaginava esse mundo que ela criou. Então isso me fascinava completamente. Essa coisa misteriosa dela, esse mundo.
Como eu sou muito cinéfilo, eu sempre gostei de garimpar muito filme. Sempre foi uma coisa muito prazerosa achar coisas que estão perdidas no tempo. Foi outra coisa que a gente batalhou muito para recuperar, o filme Mestiça. Foi um processo. Estava quase conseguindo quando a Cinemateca fechou. Eu tinha perdido as esperanças quando, no ano passado, a Cinemateca abriu e eu decidi correr atrás de novo e a gente conseguiu recuperar. Quase não conseguimos recuperar o filme. Então foi um trabalho feito no momento certo e na hora certa. Senão esse filme realmente teria se perdido.
Então eu acho que a mensagem que talvez eu queira passar é de que as coisas passam e as pessoas ficam no passado. Então acho importante as novas gerações conhecerem artistas que estão perdidos. Acho que tem uma coisa que pra mim vem muito da referência de quando eu estava fazendo o filme também que é o filme Finding Vivian Maier (A fotografia oculta de Vivian Maier, no Brasil). Que é uma fotógrafa que o diretor achou uma caixa de fotos no lixo e depois veio a descobrir que ela era uma fotógrafa incrível que fazia fotos nos anos 1940, 1950 e ninguém conhecia. Depois que ele fez o filme, ela ficou superconhecida.
Então eu quis trazer a luz para a Lenita, para o trabalho dela, principalmente de fotografia e principalmente pelo fato de ela ter sido a primeira artista brasileira a expor fotografia no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. E, por coincidência, ser uma mulher. Isso me deixava muito fascinado. “Nossa, olha que mulher incrível que fez tudo isso no passado.”
LB: Para terminar, qual é a sua expectativa para a exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo?
DP: Eu tenho uma relação muito especial com a Mostra porque, desde muito jovem, eu a frequentei muito. Eu era daqueles que, na época da faculdade, ia para assistir 40 filmes. Ficava duas semanas imerso, vendo 3, 4 filmes por dia. Então tenho um carinho muito especial pela Mostra.
Eu já estreei o filme da Cláudia Wonder na Mostra uns 10 anos atrás e está sendo um prazer voltar para a Mostra com esse filme. Principalmente por ser um filme que conta uma história que tem muito a ver com a cidade de São Paulo. Essa cena em que a Lenita viveu nos anos 1960, de festas, fashion e moda e tudo mais, tem muito a ver com o universo paulista do final dos anos 60. Essa cena mais Jovem Guarda, Tropicália, tudo estava surgindo ali, era uma efervescência muito grande. E São Paulo tinha esse grupo de pessoas fazendo filme e publicidade que era uma coisa diferente do que era feito até no Rio de Janeiro, por exemplo, ou do Cinema Novo na Bahia. Então é um prazer estrear na Mostra. Estou bem feliz com esse resultado.
Dados Técnicos
Lenita
Brasil, Alemanha | 2023 | 83 min. | Documentário
Direção: Dácio Pinheiro
Roteiro: Dácio Pinheiro, Duda Leite, Tom Ehrhardt
Produção: Gore Films
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