Outros Caras, uma banda de pop-rock do cenário independente brasileiro formada por Danilo Juliani, Flavio Braga Mota e Felipe Juliani. Eles acabam de lançar o clipe colaborativo de uma de suas melhores composições, “Fé (É Preciso ter)” neste dia 15 de maio. O resultado ficou bonito e tocante. Várias faces e bocas louvando a necessidade da fé. Tudo a ver com o momento complicado que passamos devido ao coronavírus.
O Vivente Andante conversou com banda sobre pandemia, esperança, filosofia e arte. As respostas deles foram impressionantes pela profundidade e capricho. Citaram desde Paulo Freire até Achille Mbembe, trazendo reflexões sobre esperança, necropolítica e racismo. Afinal, as canções desse grupo evoluem a cada novo single e o lançamento desse clipe marca um novo ciclo. Em seguida, confira a entrevista e o clipe colaborativo.
Alvaro Tallarico: De onde veio a ideia desse clipe colaborativo para “Fé (É preciso ter)”?
Outros Caras: A ideia partiu do Danilo. Ele teve essa”revelação” depois de escutar a música e relacionar a letra com este momento de isolamento social por conta do coronavírus. Achamos a ideia maravilhosa, pensamos a campanha e desenvolvemos tudo. Foi tudo meio rápido, mas o retorno das pessoas foi maravilhoso. E a ansiedade por parte de quem participou tá grande também.
Alvaro Tallarico: Gostaram do resultado? O que ou quem esperam que esse clipe alcance?
Outros Caras: Gostamos muito. Apesar de ser uma ideia concebida num momento específico – o de isolamento social – nossa intenção é amplificar uma mensagem de otimismo, que possa servir de inspiração coletiva ou individual, para além deste
período, que seja uma mensagem atemporal. O mundo muitas vezes nos mostra sua faceta mais triste, mais desencorajadora, mas precisamos ter fé que a tristeza e a falta de coragem passam, mas que precisamos, por outro lado, “esperançar” como bem dizia Paulo Freire. Ele dizia que “ter esperança” é do verbo esperar, e esperar é aguardar passivamente por algo.
“Esperançar” é mover as estruturas para contribuir com algo, para alcançar aquilo que almejamos. Essa é nossa forma de mover as estruturas, de, através de um clipe colaborativo, com diversas pessoas tidas como “comuns” se comprometendo a espalhar uma mensagem de otimismo e luta para as pessoas.
AT: Como está sendo a pandemia para os Outros Caras?
Outros Caras: Bem, já tínhamos combinado que este primeiro semestre de 2020 seria um período em que trabalharíamos mais nas redes sociais, com mais interação, com mais conteúdo, pois temos um novo papai na praça, o Danilo. Enquanto ele se acostumaria com essa nova fase da vida dele, a gente ia segurar a onda, movimentando outras questões, para que a banda não ficasse parada. Tínhamos, ainda no final do ano passado, a necessidade de consolidar nossas ações nas redes sociais, e esse seria o momento. Então, apesar de todo o transtorno que o corona tem causado, os planos não estão sendo tão diferentes quanto os que tínhamos pensado para este período. As lives que fazemos semanalmente e o clipe são exemplos disso.
AT: “Regalos de Asuncion” é uma estória real que vocês viveram? Quem foi o muambeiro do grupo?
Outros Caras: Não, é ficção completa! É uma forma de contar uma história de amor mal resolvida de uma forma menos usual – e até engraçada. Apesar de termos certo apreço aos produtos de qualidade duvidosa, não houve muamba da parte de ninguém. Não nessa história, pelo menos…
AT: A banda segue um pop-rock que ao mesmo tempo que parece buscar ser divertido quer também fazer pensar. Como em “Tropical”. É isso mesmo?
Outros Caras: É sim. O artista e sua obra não podem se descolar do mundo ao seu redor, e este mundo é carregado de diversão, mas exige também que tenhamos a capacidade de pensar, de refletir sobre ele e nossa existência. Achamos que os “Outros Caras – artistas”; não diferem muito dos “Outros Caras fora do palco”. É essa simbiose que tentamos trazer para nossa obra. “Tropical” é um ótimo resumo! São recortes do “latino way of life” que compõem a complexidade de viver em uma parte do mundo tão rica e diversa, mas tão desigual e cruel. A gente dança – em diversos sentidos – por estes lados…
AT: Também sinto muito a influência do rock brasileiro dos anos 80. É a base principal de vocês?
Outros Caras: Com certeza! A nossa principal referência é Paralamas do Sucesso. A sonoridade deles é um padrão que buscamos enquanto trio desde que começamos. Mas vai além deles. O Rock Brasil das décadas de 1980 e 1990 é, com certeza, uma das fontes que mais bebemos. E isso não impede que outras referências sejam agregadas ao longo do tempo. Tem sido assim ultimamente com o blues, por exemplo, nas músicas gravadas ao longo de 2019. Foi assim com os slams de poesia, em "Fé".
AT: Mais do que nunca são tempos de “Luto e Luta”?
Outros Caras: Sim. Achille Mbembe, pensador camaronês, diz que estamos vivendo o “fim do Humanismo”, em que há uma batalha entre o humanismo e o niilismo, entre vidas e capital, em suma. Ver vidas resumidas a números, a baixas de guerra,
ignorando cada história por trás destes números, a complexidade, a existência de cada pessoa é uma das tônicas que um mundo desigual teima, ainda, em levar adiante e que este momento praticamente esfrega na nossa cara todas as contradições e batalhas que nos cercam.
Por outro lado, vemos a luta de grupos que sempre foram relegados à margem, como mulheres, negros, homossexuais, pobres, por equidade. Mesmo diante das baixas, da necropolítica – outro termo deste pensador – desta máquina de moer gente, é preciso ter luta, de que as pessoas que sempre foram relegadas aos porões, aos armários, aos quartinhos de empregada, não voltarão para estes lugares. É isso que a música tenta mostrar. Mesmo diante de uma diáspora, de um processo de apagamento de identidades, de complexidades, de sentido, estamos aqui. Lutando.
AT: Aliás essa música acaba com um desabafo forte de Flávio Braga.
Outros Caras: Exato. A música é focada na (sobre)vivência de um homem negro. James Baldwin, escritor americano, dizia que “ser negro e ser relativamente consciente na América, é estar em constante estado de raiva”. E isso se aplica ao Brasil, com suas mazelas. Que mata pessoas por elas serem o que são. E esse matar não se restringe à morte física. É a morte de oportunidades, de potencial, de sonhos.
São camadas de morte tão brutais quanto às mostradas pelo Atlas da Violência. E que pode ilustrar também todo é o lidar com lutos e lutas sendo mulher, pobre ou homossexual numa sociedade como a nossa. Queiram ou não, é impossível pensar o país sem pensar como a questão racial atravessa inúmeras discussões sobre o que faz o brasil ser Brasil. A música – e principalmente, esta parte – é um grito por dignidade, por cidadania, pelo direito a coisas tão corriqueiras quanto ir a padaria da esquina sem precisar levar a identidade por medo de ser tido como bandido, por exemplo.
AT: Gostaria de saber mais sobre o trabalho social que o Flávio Braga faz.
Outros Caras: Não é um trabalho social no sentido pleno da expressão, é a atuação dele. O Flávio é professor no ensino público há mais de dez anos, e sua atuação no magistério quase sempre foi junto a jovens de favelas, como do Complexo da Penha e da Pedreira. Na Daniel Piza, escola que ele dá aula no Complexo da Pedreira, há alguns anos ele toca um projeto de poesia com alguns alunos.
É um projeto que, infelizmente, tem avanços e retrocessos, ora por conta de disponibilidade em se dedicar ao projeto, ora por fatores além muro da escola (operações policiais – que faz com que a escola feche ou funcione parcialmente, e agora, a questão de saúde pública). O Flávio, além de músico e professor, é escritor também – ele é envolvido com o movimento cultural Rolé Literário, de escritores suburbanos – e tenta levar essa paixão dele de alguma forma aos seus alunos.
AT: Quais são os planos dos Outros Caras para depois da pandemia?
Outros Caras: Voltar aos palcos e gravar músicas, principalmente. Não poder sequer ensaiar tem deixado todo mundo doido! Além disso, algumas ideias de composição estão começando, aos poucos, a serem discutidas. Terminar o ano de 2020 com
umas músicas novas vai ser ótimo!
AT: O que é arte?
Outros Caras: Arte é vida. É conferir sentido, cor, sentimento a pensamentos. Não dá para imaginar um mundo sem apreciar ou fazer arte. Definir arte em poucas palavras é um exercício que, sinceramente, é impossível! A arte não tem fim em si, tem tantos desdobramentos que é o tipo de coisa que é fácil de entender mas difícil explicar. Qual é a sensação de sentir uma música predileta tocar, ou de assistir a um filme, ver uma obra de arte? Você sabe que é tocado por aquela manifestação, mas nem sempre você consegue explicar. Arte é isso.
Sensacional a matéria. Tive a oportunidade de trabalhar com os Julianis há alguns anos atrás e ter visto o hobby (música) virar esse projeto maduro e humano. Parabéns e sucesso aos Outros Caras. Um grande abraço.
Fábio
Realmente, eles vem fazendo um bom trabalho e agora esse clipe chegou para coroar!