Salamandra, longa de Alex Carvalho que estreia hoje, 27 de junho, teve sessão de pré-estreia ontem no Rio de Janeiro. Logo antes de iniciar a exibição, houve, como sempre ocorre, um breve discurso de algumas pessoas envolvidas no filme. Estavam presentes o diretor, o ator Bruno Garcia, que interpreta o cunhado da protagonista, e uma das montadoras da produção, Joana Collier. Contudo a fala que realmente me impactou foi a da produtora do longa, Adriana Rouanet.
Ela afirmou que Salamandra é um filme que causa sensações. De fato, causa. Acredito ser bem difícil sair dele sem impacto nenhum. Contudo, ela disse que quem assistia, ou amava ou odiava. Bem, não sei se com a maioria das pessoas realmente aconteceu isso, mas eu nem amei nem odiei. Sem dúvidas, é um filme que intriga. Te deixa encucado. Algumas vezes, por uma falha de roteiro que te deixa meio na dúvida do que está acontecendo, o espectador não tem informações suficientes (pra ser justa, somente uma vez aconteceu isso). Outras, porque a própria protagonista se deixa impactar por tudo à sua volta, e o espectador acaba sendo levado a sensações também. Mas a levar a extremos, como ódio ou amor, aí é um pouco demais.
Enredo
Bom, comecemos pelo começo. Salamandra é a adaptação para o cinema do livro La salamandre, do francês Jean-Christophe Rufin. Além de escritor, também é médico e diplomata. Na sinopse oficial do longa, diz-se que Catherine (Marina Foïs), a protagonista, é diplomata. Mas em nenhum momento do filme nos damos conta disso. E também pouco importa para o desenvolvimento da história. O que importa é que ela passou os últimos anos de sua vida cuidando sozinha de seu pai doente e, após seu falecimento, resolve viajar para Recife, no Brasil, onde sua irmã (Anna Mouglalis) mora com o marido brasileiro (Bruno Garcia).
Extremamente cansada de todo o trabalho e dedicação que teve com o pai, resolve se entregar a essa cultura tão diferente da dela. Enquanto os brasileiros com quem ela tem contato são animados e falantes, Catherine é quieta, séria, reservada. Aos poucos, contudo, vai se entregando a essa nova forma de levar a vida, a partir do momento em que conhece Gil (Maicon Rodrigues), com quem começa a ter um romance tórrido.
Catherine
Antes de tudo, preciso dizer o quanto é bonito ver Catherine se entregando à vida. Ela, que precisou passar tanto tempo reclusa, dedicada ao pai, sem pensar em si, poder voltar a fazer atividades que a alegram e que a fazem ter vigor é de se emocionar. Bonita a forma com que o roteiro foi escrito, fazendo Catherine ir, aos pouquinhos, se permitindo se divertir. Sabemos que após o falecimento de uma pessoa tão próxima, e principalmente quando foi seu dever cuidar dela, é difícil a pessoa admitir que quer fazer coisas boas pra si. A culpa paira. Então, a maneira como o diretor e a atriz conduziram a personagem, bem devagar, em seu tempo, ficou emocionante. O espectador redescobre junto de Catherine o prazer de viver.
Sensualidade
Falando em prazer, é preciso dizer, também, que quem for muito pudico vai se sentir constrangido na sala de cinema. Há muitas cenas de sexo. Muitas mesmo. E são quase explícitas. Não são desnecessárias, todavia. Elas estão ali para mostrar exatamente essa redescoberta de Catherine. Você pode perceber como, a cada sequência de sexo, ela vai se entregando mais e mais a Gil. Ela vai conduzindo mais ele. Ela vai tomando mais a frente. Isso porque é o tempo que ela vai levando para se sentir vivendo novamente, se sentir apta a tomar as rédeas da sua vida, dos seus próprios desejos mais uma vez.
É somente uma das formas com que Catherine aprende a fazer as coisas para si, e não para os outros. Porque fica muito claro que ela, como a maioria das mulheres, viveu muito pro outro e esqueceu como cuidar de si. E ela percebe que tem esse direito. Marina Foïs mostra toda a fragilidade e medo de Catherine no começo e, com o passar do tempo, é lindo ver essa mulher retomando seu poder.
Olhar estereotipado
Contudo, apesar de ser uma história de força feminina, de retomada de consciência de seus desejos, nem tudo são flores. Há um certo quê de estereotipação de alguns personagens brasileiros. Principalmente de Gil. É interessante como o personagem é trabalhado para mostrar o racismo existente na sociedade. Mais do que isso, também se percebe um elitismo imenso, onde você precisa ser de um certo jeito e se portar de certo jeito para ter respeito. Já estamos cansados de saber que tudo isso existe, infelizmente, no Brasil – e no mundo inteiro, para tristeza da humanidade. Contudo, em Salamandra deixa uma estranheza no espectador toda vez que apresenta o personagem Gil.
Preconceitos
Gil é praticamente o único homem preto do enredo, entre os personagens principais. A partir de então, pode se ter duas leituras do plot. Sabendo que o filme é baseado em um livro escrito por um europeu que é branco e rico, infelizmente é mais provável acabarmos pensando na leitura mais negativa. Gil acaba, em certo momento, sendo o vilão da história. Mas de uma forma bem preconceituosa. Ele é preto e é pobre e é retratado como sendo aproveitador, controlador, mentiroso, ladrão. Não teria problema isso acontecer se ele não fosse o único personagem preto. Sendo, esse fato torna-se muito problemático.
A isso soma-se o fato de que seu personagem é altamente sexualizado no filme. Para quem não sabe, uma das facetas do racismo é somente sexualizar o corpo preto, enxergando-o como nada além de um corpo para ser usado para sexo. É muito comum pessoas pretas relatarem que seus pares não saem com eles na rua, como se tivessem vergonha, ou só quererem transar. Na hora de um relacionamento mais sério, escolhem uma pessoa branca. Portanto, Gil ser retratado com esse grau de sensualidade e, ainda, com as questões que mencionei anteriormente, deixa tudo pior.
Elitismo
Contudo, como eu disse, há outro viés. E, nele, Gil é a vítima, sendo explorado por seu “irmão”, Pachá (Allan Souza Lima). Dessa forma, mostra como muitas pessoas pretas e pobres precisam se submeter a pessoas brancas e ricas, fazendo coisas que muitas vezes nem concordam, para conseguir o básico. E como a humilhação é algo constante em suas vidas. Se esse for o caso, está aí uma bela – e verdadeira – crítica social.
Talvez não devamos escolher entre uma explicação ou outra. Talvez seja as duas coisas. A vida é mesmo complexa e paradoxal e nada dual, mesmo que as pessoas tentem nos fazer acreditar que sim. Então basta o espectador entender e querer tirar a moral que quiser disso.
Salamandra
Após assistir o filme, fui pesquisar um pouco sobre o animal salamandra. Afinal, além de saber que são animais que ficam por muito tempo no sol, eu não sabia muita coisa sobre o bicho. Eu não conseguia entender o motivo do título do longa – e do livro original – ser esse. Tudo bem, ela saiu da França, onde é mais frio, para ir até Recife, onde tem praia, sol. Mas só isso não me parecia ser motivo suficiente para se dar nome a uma obra tão densa e complexa como essa.
Então descobri que salamandras se regeneram. É o único anfíbio que tem capacidade de, após a fase adulta, regenerar membros quando decepados. Além disso, elas vivem sozinhas, só se juntando a outras quando querem copular. Então emitem uma substância com cheiro para atrair parceiros na época do acasalamento. E, em geral, só emitem sons quando querem espantar predadores. Depois de ler isso, tudo fez sentido. E você também vai entender quando assistir a Salamandra. Corre pros cinemas logo na primeira semana porque, provavelmente, é um filme que não ficar muito tempo nas salas de cinema (principalmente com Divertidamente 2 em cartaz ao mesmo tempo).
Produção
Salamandra é o filme de estreia de Alex Carvalho. O longa estreou no Festival de Veneza e na 45ª Mostra Internacional de São Paulo, em 2021. Foi rodado inteiramente em Olinda e no Recife, onde Rufin, o autor do livro original, atuou como adido cultural do Consulado Francês no final dos anos 80. É uma coprodução do Canal Brasil e Telecine, e será lançado no Brasil pela Pandora Filmes.
Por fim, fique com o trailer:
Ficha Técnica
SALAMANDRA
Brasil, França, Alemanha, Bélgica | 2021 | 116min. | Drama
Direção e roteiro: Alex Carvalho, a partir do romance La Salamandre, de Jean-Christophe Rufin
Colaboração na adaptação: Rita Toledo, Nelson Caldas Filho, no Brasil. Alix Delaporte e Thomas Bidegain, na França.
Produção: Alex Carvalho, Tiago Carneiro Lima, Sven Schnell, Patrick André, Julie Viez
Coprodução no Brasil: Adriana Rouanet e Paula Cosenza
Elenco: Marina Foïs, Maicon Rodrigues, Anna Mouglalis, Bruno Garcia, Allan Souza Lima, Buda Lira, Suzy Lopes
Direção de fotografia: Josée Deshaies
Trilha sonora: Jam da Silva
Direção de arte: Juliana Lobo
Desenho de som: Edson Secco
Montagem: Joana Collier e Agnieszka Liggett
Coprodução: Canal Brasil e Telecine
Apoio: Projeto Paradiso e Instituto Rouanet
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