Depois de muita demora por conta da pandemia global, “A Crônica Francesa”, o último filme do diretor texano Wes Anderson, estreou no ano passado. A história gira no entorno da última edição da revista French Dispatch, um adendo cultural de um jornal americano baseado em Ennui-sur-Blasé, uma Paris fictícia. Essa última edição serve de elogio fúnebre e epitáfio, tanto à revista em si quanto ao seu editor (Bill Murray) que acabou de morrer. Além disso, a French Dispatch é uma carta de amor à cidade, a sua cultura e às suas pessoas.
Muitos, muitos personagens
Pela primeira vez na cinematografia de Anderson, podemos ver um compilado de histórias ao invés de uma narrativa única. A partir da lógica de uma revista, o filme é dividido em 4 artigos, que são narrados pelos seus respectivos autores: Herbsaint Sazerac (Owen Wilson), J.K.L. Berensen (Tilda Swinton), Lucinda Krementz (Frances McDormand) e finalmente, Roebuck Wright (Jeffrey Wright). Esse grupo de jornalistas, cronistas, redatores e poetas une, tece e narra a edição final. Cada um discorrendo segundo a sua especialidade, contando uma parte da vida em Ennui-sur-Blasé.
Dando continuidade ao elenco dos narradores-personagens, “A Crônica Francesa” tem diversas outras estrelas, como o queridinho do momento, Timothée Chalamet, a Bond girl Léa Seydoux, Benicio del Toro, Adrien Brody e muitos, muitos outros atores. Esse timaço de estrelas é o equivalente ao Vingadores Ultimato do cinema de arte, mas com mais profanidade, nuance e cigarros.
Plot e narrativa
Assim, a história de “A Crônica Francesa” é uma antologia de pequenas histórias. Da introdução, ao passeio cênico de bicicleta, até coberturas artísticas, políticas e criminal-culinárias, o filme retrata a nata de uma cultura pseudo francesa dos anos 60 ou 70. A facilidade com que “A Crônica Francesa” pula no tempo, no espaço e na linguagem narrativa serve apenas para atestar a maestria com que Anderson dirige e faz o seu worldbuilding.
Dessa forma, a French Dispatch se assemelha à Ilustríssima e à Piauí, além de tantas outras revistas que informam e formam opinião para a alta classe dos leitores contemporâneos. Fora do Brasil, essa comparação pode ser feita apenas com o New Yorker, a inspiração mais clara e direta desse prolixo suplemento cultural. A partir dessa comparação, pode-se entender para quem é “A Crônica Francesa”: cinéfilos, diletantes, cultos, imortais da ABL, assinantes da Quatro Cinco Um e frequentadores do Sala Cecília Meireles. Em suma, não é para todo mundo.
Indo contra essa ideia de elevação cultural e moral, “A Crônica Francesa” mostra uma cidade suja, cheia de ratos, prostitutas e crimes. Essa contradição é irônica e hilária, sendo, de longe, um alívio no meio de tanto nariz em pé e bons modos. É com esse tipo de gracejo que Anderson não perde a audiência, mas a conquista definitivamente. Sua linguagem floreada acaba pesando nos “capítulos”, dando a impressão que eles se arrastam nos últimos minutos, o que é cansaivo mas não necessariamente ruim.
A muitíssimo bem-vinda, mas torta, evolução
Como todo filme, é necessário fazer uma análise justa, ao invés de rasgar seda gratuitamente. Os cinematografia do Anderson é como um toda elitista, isso não é novidade para ninguém, mas além disso, nela falta representatividade. Em quase todos os seus filmes (até então), existiu uma quase total inexistência de atores afro americanos, nativos americanos, asiáticos, latinos, etc.
Quando estes estavam presentes (vide, The Darjeeling Limited), os atores e atrizes são tratados como objetos no plot, sendo responsáveis apenas por movimentar o enredo, muitas vezes desprovidos de personalidade ou mesmo de diálogos. Pior ainda, existe uma constante “orientalização” que fetichiza as culturas não euro centradas. Em “Ilha dos Cachorros”, Anderson foi criticado fortemente por essa visão branca e fetichizada da cultura japonesa.
Remando contra essa hegemonia, “A Crônica Francesa” têm alguns atores não brancos, entre eles Jeffrey Wright e Stephen Park. Essa pequena representatividade demonstra uma guinada na forma que Anderson dirige e monta o seu elenco. O momento para elencos não diversos nunca esteve aqui, mas aparentemente a indústria só entendeu agora, ainda que esteja empurrando com a barriga uma revolução mais sólida.
Considerações finais
Afinal, como deveria ser um filme do Wes Anderson? Esperamos uma trilha sonora retrô, um batalhão personagens idiossincráticos e emocionalmente ausentes, um design de produção obcessivamente detalhado, tons pastéis, conflitos emocionais frios, e tanto tanto mais. “A Crônica Francesa” apresenta todos os itens dessa checklist e ainda assim respira com a novidade.
Finalmente, apesar dos probleminhas, uma história fascinante e envolvente se desenvolve nos 108 minutos de duração. O saudosismo por uma França que nunca existiu é criado, acalentado e entregue à audiência, que ao fim sonha em pegar um avião e se mudar para Ennui-sur-Blasé; mas que se contentaria em pelo menos comprar edições antigas do French Dispatch no eBay.
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