Um Brinde ao Caos
Eu lembro, quase com sabor nos lábios, da tranquilidade da nossa rotina de sábado, de alguns aspectos da segunda de manhã cedo, ficava acordada enquanto você irradiava bom dia em um abraço, e eu retribuía com um poema aos teus ouvidos. E tudo isso era a nossa dança secreta e íntima, agora é como se bailássemos em um palco sem cortinas com todos os nossos demônios na
plateia. Nossos corpos se costuravam no mergulho do espaço, e eu me deslizava na extensão do teu dorso; dançava o teu corpo bruto de chuva. Era o meu cosmos, era o sentido da nuvem, da rocha, quem sabe até de da embriaguez serena dos teus olhos, da tua nuca, da tua voz na minha coxa. Você me flutuava como se eu fora um rio, e eu escondia os meus desertos. Eu me lembro que eu sofria.
Mas algo me doía. Não o sol dessas lembranças, mas o inominável, o feixe de sombra e isso é o que reverbera o não-dito da minha dor. Ioiô na corda de equilíbrio. Não! Às vezes penso que equilíbrio é do demônio, Deus que é Deus surta, inunda, arrasa nações e fala palavrão pesado para deixar límpido e puro – tal qual uma cachaça – o discurso. Eu já te amava pelo avesso e era o avesso do avesso somente, eu não queria te humilhar a qualquer preço, eu só queria me buscar, me levar embora desse cosmos, da tua tranquilidade que não existe até hoje: você só engana os trouxas.
Tom castanho
Eu tinha que correr até que as estradas se perdessem dos meus sapatos; correr até devorar toda e qualquer possibilidade de rota. Eu fiz a minha trouxa e fui. Já não me sabia, não sabia mais se estava simplesmente nas vertigens da ruína a procurar por cada porção do que poderia ser a minha vida, a minha vida – a que tenho desde muitos antes de nascer – ou se me perdera para sempre, seria uma outra, com outra forma ou uma outra frase talvez. Talvez daquele livro que você me leu antes do almoço de uma sexta-feira de estrogonofe e salada de agrião. Estava frio, eu usava casaco e você estava seminu.
Você voltava do trabalho. Havia o banho, o jantar, o entrelaçar, o vinho, o verbo, a tua perna na minha, o dia, as horas. Eu fui embora de você em muitos pra-sempres mas voltava com as minhas malas nas tuas mãos. Apreciava tanto a imensidão do silêncio, tudo era fome e seus olhos a me perscrutar . Até hoje tenho a intuição de que os seus olhos me vigiam, mas deve ser o
costume e a memória da curva em tom castanho indecifrável.
*Um Brinde Ao Caos é um conto inspirado a partir do espetáculo de dança ‘Um Brinde à Desordem‘