Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things) é um dos filmes mais interessantes e complexos que vi nesse ano de 2020. De certa forma, combina com 2020, um ano estranho, diferente, com tantas especificidades inesquecíveis. Com um fotografia caprichada do polonês ?ukasz ?al que varia de forma bem perceptível – e pontual – ao longo dos capítulos do filme, vamos acompanhando Lucy (Jessie Buckley, perfeita) e Jake (Jesse Plemons, excelente). Um casal que está namorando há sete semanas. Então, Jake a leva para conhecer os pais dele (Toni Collette e David Thewlis). A viagem de carro é em meio a poesia da neve que cai, entre balanços perdidos no meio do nada e um diálogo potente.
Sentimos a nostalgia do que ainda nem aconteceu, enquanto a narração da aparente protagonista é tocante em suas reflexões. Estamos ouvindo os pensamentos dela, seus medos e incertezas. Pensamentos que falam alto não só para o espectador. Aliás, a beleza melancólica da neve nesse primeiro capítulo é envolvente, e o diretor consegue dar dinamismo a uma sequência que dura bastante, dentro do carro, variando os ângulos e os simbolismos, como do limpador do para-brisa no seu movimento contínuo.
Como já citado, principalmente nesse começo, a poesia ronda, e uma declamação em especial chama atenção pela força e naturalidade, com o diretor trazendo um momento forte e surpreendente, exatamente de acordo com o que a personagem fala. Senti como se estivesse sento atravessado por um olhar. Foi uma sensação que senti poucas vezes de maneira tão pungente ao ver um filme.
Metalinguagem transcendental
Ainda há citações diversas de filmes e livros, trazendo um tom de metalinguagem, elogioso e crítico, ao mundo atual, onde vemos tantas películas de forma banal e comercial. Inclusive, o diretor coloca um trecho de outro filme para criticar isso. Por outro lado, Estou Pensando em Acabar com Tudo está longe de ser banal. Começa tenso e sombrio, parece que esperamos alguma tragédia para acontecer a qualquer instante. “Os animais vivem no presente porque não sabem que vão morrer” é uma das frases que se destacam. Enquanto isso, é possível dar boas risadas, ao mesmo tempo em que o constrangimento que vemos nos atinge em cheio.
A saber, comecei a ver Estou Pensando em Acabar com Tudo, quase que de repente, para escrever sobre, mas não vi nada sobre ele antes. Entretanto, desde o início me impressionei. Depois descobri que o roteirista/diretor era Charlie Kaufman, que fez “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (que adoro), “Adaptação” e “Quero Ser John Malkovich”. Ou seja, só filmaço. Esse é uma adaptação livre do livro homônimo do canadense Iain Reid.
O elenco está impressionante, logicamente que a direção de Kaufman, e a profundidade do roteiro, fortalecem. Contudo, se não fosse pelo trabalho tão afinado dos atores dentre todas as nuances que precisam representar, o filme não seria tão bom. E é muito bom, o enredo psicológico faz pensar sobre nós mesmos – e as escolhas.
Tempo amigo, seja legal, conto contigo, pela madrugada
Estou Pensando em Acabar com Tudo fala sobre o tempo. A noção que temos – ou que não temos. Isso inclui a velhice. Quando o tempo passou e o fim se aproxima. Também há filosofia e questionamentos, claro, se falamos sobre o tempo, há de ter. As simbologias são muitas, fala-se desde questões de feminismo até a derradeira morte. O formato quadrado é outro diferencial e uma escolha bem específica para lembrar o formato de TV. Além disso, há uma sequência de dança belíssima, poeticamente impressionante. Há muito mais para ser dito, mas é preciso ver o filme novamente. Prestar atenção, digerir. Não é para divertir, entreter. É para apreciar e pensar.
Enfim, não há realidade objetiva e essa é uma das melhores experiências cinematográficas que tive esse ano. Graças a essa obra densa sobre uma vida e o poder da arte como redenção e respiro.
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